Proposta para a organização do Serviço Social nas ULS: «Mantemos uma grande expetativa»
Entre abril e maio deste ano, a recém criada Equipa Coordenadora Nacional na área do Serviço Social (ECNSS), aprovada em fevereiro pela então Direção Executiva do SNS, realizou "reuniões presenciais com elementos da Direção ou Coordenação do Serviço Social e do Conselho de Administração das 39 ULS", explica Júlia Cardoso, presidente da Associação dos Profissionais de Serviço Social (APSS) e membro da Comissão Instaladora da Ordem dos Assistentes Sociais.
Em entrevista à Just News, a responsável indica a importância deste documento e do trabalho realizado pela ECNSS, que evidencia "as potencialidades do modelo no âmbito da integração dos cuidados". Mas não só. Entre outros propósitos, as reuniões permitiram "identificar a fase de elaboração dos instrumentos previstos, tendo em vista uma intervenção que, articulando os dois níveis de cuidados, esteja centrada na Pessoa".
A par de Júlia Cardoso, também Maria Farçadas Camacho, assistente social da ULS de São José, e Inês Espírito Santo, da APSS, integram o grupo de seis profissionais que integram a ECNSS e, como explicam abaixo, a melhor organização do Serviço Social tem implicações diretas em reduzir a pressão nas urgências e um papel fundamental para "controlar um dos problemas com que se depara o SNS: o dos internamentos prolongados, inapropriados, por motivos sociais".
Orientações para a Organização do Serviço Social nas Unidades Locais de Saúde
Just News: Que trabalho foi necessário desenvolver para a elaboração da proposta de organização do Serviço Social nas Unidades Locais de Saúde (ULS)?
Julia Cardoso:
No âmbito da criação/extensão do modelo das ULS a todo o país, em maio de 2023 a Associação dos Profissionais de Serviço Social, com o apoio da Comissão Instaladora da Ordem dos Assistentes Sociais, apresentou à Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde ((DE-SNS) uma proposta de organização do Serviço Social nas Unidades Locais de Saúde (ULS), na mesma linha do que havia sido apresentado por outras categorias profissionais, designadamente, psicólogos e nutricionistas.
Pretendeu-se, com estes documentos chave, apoiar e orientar a organização dos profissionais segundo uma filosofia de integração de cuidados que tem na sua base, também, a integração dos dois níveis de atuação no sistema de saúde: os cuidados hospitalares e os cuidados primários em saúde.
O documento “Orientações para a Organização do Serviço Social nas Unidades Locais de Saúde” foi aprovado, na sua globalidade, pela Direção Executiva do SNS em 04/01/2024 (Deliberação DE-SNS 005/2024) que, respondendo ao proposto no documento, aprovou também a constituição de uma Equipa Coordenadora Nacional na área do Serviço Social, com o objetivo de, na primeira fase de organização das ULS em todo o país, apoiar, facilitar e orientar o processo de mudança em curso.
A Equipa Coordenadora Nacional na área do Serviço Social (ECN-SS) foi constituída por um elemento da DE-SNS, que coordenou, e por representantes indicados pela Associação dos Profissionais de Serviço Social e pela Comissão Instaladora da Ordem dos Assistentes Sociais, tendo como critério a participação dos três elementos mais diretamente envolvidos na conceção do documento orientador e duas assistentes sociais integradas em ULS em funcionamento há alguns anos (ULS do Alto Minho e ULS da Guarda).
Júlia Cardoso
A Equipa realizou reuniões presenciais com elementos da Direção ou Coordenação do Serviço Social e do Conselho de Administração das trinta e nove (39) ULS, entre 4 de Abril a 7 de Maio de 2024. Para além do destaque para as potencialidades do modelo no âmbito da integração dos cuidados, as reuniões tiveram como propósito:
-conhecer o trabalho desenvolvido na reorganização do Serviço Social e na constituição do modelo de gestão de acordo com para o modelo de ULS;
- fazer o levantamento do número de assistentes sociais adstritos a cada nível de cuidados;
- conhecer os procedimentos adotados para a integração dos dois níveis de cuidados (Hospital/Cuidados de Saúde Primários) na área do Serviço Social;
- identificar a fase de elaboração dos instrumentos previstos, tendo em vista uma intervenção que, articulando os dois níveis de cuidados, esteja centrada na Pessoa e que privilegie o seu acompanhamento através de um processo social e administrativo único, que inclua as diferentes dimensões dos seus contextos de vida além da saúde/doença.
Just News: Quais os principais elementos que identificaram e quais as principais conclusões no levantamento realizado?
Inês Espírito Santo:
Do trabalho realizado com todas as ULS do país, merecem destaque alguns elementos para reflexão:
- a nível nacional, a existência de assimetrias entre o número de assistentes sociais em funções face à população residente nos territórios das ULS, às suas características geográficas, ao que poderá ser o perfil de risco em saúde da população, ao número de camas hospitalares e da Rede de Cuidados Continuados; tais assimetrias não estarão, certamente, desligadas de potenciais disparidades no acesso aos serviços de saúde e de desigualdades no que concerne à atenção e aos cuidados a que os cidadãos têm direito;
- nas 39 ULS encontram-se em funções 902 assistentes sociais, estando 585 (65%) adstritos aos cuidados hospitalares e 317 (35%) aos cuidados de saúde primários; esta distribuição indica uma tendência de concentração dos recursos humanos em ambientes hospitalares, em detrimento dos cuidados de saúde primários (CSP).
- De modo geral, o Serviço Social dos CSP não tem sido chamado para coordenar o processo de mudança para o modelo ULS, ocorrendo, também, situações em que o Serviço Social dos CSP não se encontrava, sequer, envolvido na construção do modelo de integração de cuidado;
- O número de assistentes sociais é claramente insuficiente para fazer face às necessidades das pessoas e aos desafios que o SNS atravessa, tanto do ponto de vista das mudanças sociais, demográficas e económicas com implicações diretas nos contextos e resultados em saúde, como da sustentabilidade do sistema, quer do ponto de vista financeiro, quer organizacional.
Inês Espírito Santo
Just News: Uma das propostas passa pela criação de um grupo de assistentes sociais dos dois níveis de cuidados. Em que medida pode trazer melhorias no dia a dia?
Maria Farçadas:
O Serviço Social nas ULS passou a ser um serviço com uma direção própria e com a missão de participar na consolidação da integração de cuidados. Ora, a integração de cuidados é mais do que a soma das partes, é mais do que juntar duas equipas sob a mesma coordenação; requer a constituição de grupos de trabalho que representem os dois níveis de cuidados em saúde na definição de estratégias e de procedimentos para a construção de um percurso de integração.
O modelo de ULS é uma oportunidade de mudança de paradigma: de cuidados reativos, centrados na doença e na intervenção em contextos de urgência, para uma lógica de prevenção, de acompanhamento, de proximidade, baseada na avaliação das necessidades e do risco segundo os determinantes em saúde, onde os determinantes sociais têm um peso significativo.
Mas a mudança é feita pelas pessoas, pelas equipas, por isso torna-se fundamental implementar mecanismos de coordenação entre as diferentes áreas de cuidados e entre os sistemas de saúde e sociais, para garantir eficiência nas intervenções e uma transição segura de cuidados.
O trabalho conjunto, articulado, entre os dois níveis de cuidados, na área do Serviço Social e nas demais áreas profissionais, que privilegie a proximidade, a prevenção e a antecipação, responderá melhor às necessidades dos doentes/familiares/cuidadores, promoverá o acesso aos cuidados em tempo útil e melhorará a satisfação dos profissionais por via da obtenção de melhores resultados na intervenção.
Não obstante, prevalece ainda uma visão hospitalocêntrica, pelo que insistimos na necessidade de investir de forma consistente nos CSP, no seu papel crucial na prevenção e na promoção da saúde, base de um sistema de saúde eficaz e eficiente.
É nos CSP que mais facilmente se pode construir e desenvolver a cooperação entre serviços, equipas, atores e agentes do espaço comunitário, o trabalho em rede e em parceria, que permite planear e intervir de forma concertada perante necessidades identificadas pelo coletivo, onde devem estar incluídos os próprios cidadãos alvo dos cuidados.
Insistimos, pois, no reconhecimento da importância do trabalho na e com a comunidade, na promoção e prevenção em saúde, de modo a inverter a lógica de intervenção reativa que tem imperado no sistema. Obviamente, tal mudança requer o reforço das equipas dos CSP tanto na área do Serviço Social como nas restantes áreas profissionais.
Maria Farçadas
Just News: Tal como é referido no documento ‘Orientações para a Organização do Serviço Social nas Unidades Locais de Saúde’, o facto de Portugal ter um índice de envelhecimento muito elevado faz com que o Serviço Social ganhe uma “dimensão critica em termos da saúde, na integração de cuidados e na articulação com a comunidade”. Pode de facto fazer uma grande diferença?
Inês Espirito Santo e Maria Farçadas:
É consensual na literatura internacional os ganhos em saúde decorrentes da intervenção do assistente social, integrado nas equipas multidisciplinares, na sua relação com a comunidade, com o cidadão e as suas redes.
Assistentes sociais das ULS têm de ter uma participação ativa no diagnóstico social do território de cada ULS para se perceber as necessidades e identificar os determinantes sociais que devem ser prioridade de intervenção, segundo uma cultura de proximidade, de responsabilidade partilhada e colaborativa entre a Saúde, Segurança Social, Autarquias e Serviços da Comunidade.
A abordagem em saúde é multifatorial, multidimensional, complexa, e o peso dos determinantes sociais (com um peso de 70% nos resultados em saúde) exige a atenção necessária por parte dos decisores políticos, dos órgãos de gestão das organizações e dos profissionais.
O elevado índice de envelhecimento requer não só um trabalho de natureza preventiva como planeamento não só assente nas necessidades atuais como nas que resultarão da evolução das condições demográficas e suas consequências em saúde; compete às instituições locais, onde se inclui a ULS, a elaboração de diagnósticos territoriais intersectoriais, que identifiquem a população, as suas necessidades, os serviços e respostas sociais existentes e a previsão da sua evolução, tendo por base a estratificação pelo risco.
O Serviço Social tem um capital de conhecimento e de competências teóricas, técnicas e éticas que lhe permite compreender, agir, avaliar e participar nos processos de mudança, ao nível do indivíduo, da comunidade, das responsabilidades das organizações, em estreita articulação com os diferentes parceiros da comunidade.
É através desta metodologia que diminuirá a pressão nas urgências, nos cuidados hospitalares e se poderá controlar um dos problemas com que se depara o SNS: o dos internamentos prolongados, inapropriados, por motivos sociais.
Políticas públicas na área do envelhecimento, uma atuação próxima e mais consistente dos CSP junto das pessoas idosas e a articulação dos sistemas social e de saúde na definição de medidas e metas, assumem um papel crítico na recuperação, manutenção e promoção da saúde e bem-estar das pessoas, sobretudo das pessoas de idade avançada.
O conhecimento da população confirmará a diversidade de necessidades e de serviços que devem ser criados ou melhorados e que ultrapassam a competência específica da saúde e, por isso, a importância do planeamento e da ação concertada com a Segurança Social, com as Autarquias, com as organizações próximas dos cidadãos.
Just News: Face à recente e profunda reestruturação da Direção Executiva do SNS, qual a expectativa relativamente à proposta apresentada de organização do Serviço Social?
Júlia Cardoso:
Mantemos uma grande expetativa quanto à consolidação do modelo definido para as ULS e na sua filosofia de integração de cuidados. Estamos certas de que os decisores políticos manterão os compromissos para com os cidadãos, orientando a ação pública na garantia de melhores cuidados ao longo do ciclo de vida e segundo uma perspetiva de prevenção e de promoção da saúde, para além do tratamento e da intervenção em situações de doença.
E, neste campo, e no que diz respeito ao Serviço Social, não temos dúvidas de que a integração das equipas dos cuidados de saúde primários e dos hospitalares numa estrutura única facilita a comunicação e articulação entre todos os profissionais, cria oportunidades de colaboração e permite uma resposta de proximidade, contínua e otimizada ao longo do ciclo de vida da Pessoa.
A valorização dos determinantes sociais da saúde, a cooperação ativa entre a Saúde e a Segurança Social, maior participação e envolvimento das Autoridades Locais no bem-estar das populações, constitui matéria fundamental para a ação política mas, também, um domínio de atuação de maior exigência para os profissionais de diferentes áreas, onde se incluem os e as assistentes sociais.