«7% dos atletas de alta competição sofrem com sintomas depressivos e/ou de ansiedade»
Depressão e ansiedade são apenas dois dos problemas da área da saúde mental que podem afetar os atletas de alto rendimento, sendo que mais de 90% deles não têm acesso direto a apoio psiquiátrico.
Como seria de esperar, é na fase de competição que os atletas mais sofrem com sintomas de depressão e/ou de ansiedade, comparativamente com aqueles que se encontram já num momento de pós-carreira, sendo essa diferença mais evidente no caso da ansiedade. E a percentagem sobe de 7% para 10% (1 em cada 10) quando se fala de burnout.
Realizado pelo Observatório de Saúde Mental da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM), foram consideradas como válidas para inclusão neste inquérito online as respostas dadas por 147 atletas de alta competição, com idade igual ou superior a 18 anos.
“Foram utilizadas escalas de depressão, ansiedade, burnout, risco de alcoolismo e resiliência e foi também avaliado o consumo de substâncias ilícitas, o acesso a cuidados de saúde mental e o estigma associado à doença mental”, esclarece a coordenadora do inquérito, Maria João Heitor, diretora do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Beatriz Ângelo (ULS de Loures-Odivelas) e presidente cessante da SPPSM.
A divulgação dos resultados do inquérito foi, aliás, um dos pontos altos do programa do II Seminário Nacional de Saúde Mental no Desporto de Alta Competição, realizado no final de maio, em Lisboa. O evento, cuja primeira edição aconteceu em novembro de 2022, tem uma organização conjunta da Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal (AAOP) e da SPPSM.
De referir que quase 1 em cada 5 atletas (22,9%) classifica como “desequilibrada” a conciliação entre a vida pessoal e familiar com o desporto. Mais de metade (57,9%) admite que a transição para a fase pós-carreira foi “difícil” ou “muito difícil”.
Entretanto, 18% admitiram ter ou ter tido uma doença mental diagnosticada por um médico ao longo da sua vida, sendo que 30% destes não realizou qualquer tipo de tratamento (consultas, medicação ou outro). Foi também possível concluir que 15,3% dos atletas considerados no inquérito mantêm um consumo excessivo de álcool, sobretudo no pós-carreira, enquanto o uso de substâncias ilícitas (15,2%) se apresenta similar em competição e no pós-carreira.
Verificou-se, igualmente, que, no clube/entidade a que estão ligados, 36,7% dos atletas dizem não ter acesso direto a um psicólogo e 93,3% referem ter idêntica dificuldade relativamente ao apoio psiquiátrico, obrigando-os a seguir o circuito habitual da população em geral, o que pode ser mais demorado.
Em termos de como cada um perceciona o estigma contra a doença mental, curiosamente, mais de 50% consideram que a procura de cuidados de saúde mental não iria colocar em risco a sua carreira ou relações profissionais. No entanto, 22,4% afirmam que esse risco existe, ou seja, 1 em cada 5 atletas teria receio de procurar ajuda.
“Se pensarmos que os problemas psiquiátricos podem aumentar o risco de lesão física e, quando esta existe, atrasar a recuperação do atleta, compreendemos ainda mais a sua extrema relevância”, afirma Maria João Heitor.
Luís Alves Monteiro, presidente da Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal, e Maria João Heitor
A necessidade de elaborar recomendações nacionais
A coordenadora do inquérito promovido pelo Observatório de Saúde Mental da SPPSM defende que “seria importante criar um grupo de trabalho multidisciplinar, nomeadamente com profissionais de saúde mental, para a questão ser estudada a partir deste primeiro diagnóstico da situação”. Como base de trabalho, já existem declarações de consenso e orientações internacionais, incluindo um documento do Comité Olímpico, produzido em 2019.
Maria João Heitor considera ser necessário que sejam emitidas recomendações e um conjunto de medidas nacionais em cinco vertentes: prevenção (com identificação de fatores de proteção e de risco); avaliação (precoce em atletas de risco); intervenção (farmacológica e não farmacológica, por exemplo, psicoterapêutica); reintegração (de atletas que tenham estado temporariamente afastados dos treinos e da competição, por problemas de saúde mental).
“É importante que na elaboração destas recomendações estejam envolvidos profissionais de saúde mental, em conjunto com treinadores, atletas e outros stakeholders que tenham um conhecimento profundo dos ambientes desportivos”, frisa a psiquiatra. E acrescenta, na lista de medidas a tomar, a promoção da literacia em saúde mental de atletas, treinadores, famílias e público em geral, bem como a divulgação destas temáticas à sociedade civil.
Maria João Heitor conclui ainda que “o sofrimento psicológico e a experiência de ter uma doença mental pode também ser mais uma oportunidade de aprendizagem, crescimento e desenvolvimento pessoal e não apenas algo negativo”.