«Prescrição por enfermeiros»
Luís Filipe Barreira
Bastonário da Ordem dos Enfermeiros (OE)
A prescrição por enfermeiros é uma realidade consolidada em vários países e tem demonstrado ser uma solução eficaz para melhorar a resposta dos sistemas de saúde. No entanto, em Portugal, apesar das competências reconhecidas aos enfermeiros, a legislação não permite que prescrevam dispositivos, produtos de apoio ou medicamentos.
Ou melhor, não impede em algumas situações, mas estas prescrições não são válidas para efeitos de comparticipação pelo Estado. Esta limitação não só restringe a autonomia e as suas competências como também gera atrasos no acesso a cuidados.
O aumento da esperança de vida e a evolução do perfil epidemiológico da população têm levado a um crescimento da procura por cuidados de saúde, nomeadamente no acompanhamento de doentes crónicos, na reabilitação, nos cuidados domiciliários e nos cuidados continuados. Os enfermeiros desempenham um papel de crescente importância nestes contextos.
Contudo, sem autonomia na prescrição, veem-se obrigados a recorrer constantemente a outros profissionais para validar decisões que poderiam tomar de forma segura e autónoma, atrasando a prestação de cuidados e sobrecarregando ainda mais o sistema.
A gestão da doença crónica é um dos exemplos mais evidentes da necessidade de prescrição por enfermeiros. Doentes com diabetes, hipertensão ou insuficiência cardíaca necessitam frequentemente de ajustes terapêuticos, prescrição de material de autocontrolo ou orientações sobre a
utilização de medicamentos.
Luís Filipe Barreira
Nestes casos, os enfermeiros, que já acompanham de perto estes doentes, poderiam intervir de forma mais célere e eficaz, garantindo maior adesão ao tratamento e prevenindo complicações.
Outro exemplo relevante é a prescrição de dispositivos e produtos de apoio. Estes materiais são essenciais para a continuidade dos cuidados, mas a burocracia existente para a sua prescrição atrasa a resposta às necessidades dos doentes, comprometendo o seu conforto e bem-estar. A possibilidade de os enfermeiros prescreverem diretamente estes dispositivos reduziria o tempo de espera e melhoraria a qualidade da assistência.
Por outro lado, o acompanhamento de grávidas de baixo risco e a assistência a partos normais são áreas em que os enfermeiros especialistas em Saúde Materna e Obstétrica poderiam prescrever, entre outros, meios complementares de diagnóstico, permitindo reduzir tempos de espera e evitar consultas médicas adicionais apenas para validação de exames já indicados pelos enfermeiros.
A Saúde Mental é outra área onde a prescrição por enfermeiros seria aconselhável. Trata-se de uma área em que os enfermeiros especialistas encontram barreiras na prescrição de medidas terapêuticas ou no ajuste de estratégias que poderiam ser implementadas de imediato.
Para dar só mais um exemplo, a prescrição por enfermeiros de meios complementares de diagnóstico ou o início imediato de terapêuticas adequadas de forma autónoma em contextos de doença aguda, de acordo com protocolos estabelecidos, no momento da triagem, poderia melhorar significativamente o atendimento nos serviços de Urgência. Seria possível reduzir tempos de espera e garantir que os utentes recebem os cuidados necessários da forma mais rápida e eficiente.
A prescrição por enfermeiros não tem como objetivo substituir médicos, mas sim complementar e otimizar a resposta do sistema. Permitir que os enfermeiros prescrevam dentro das suas áreas de competência resultaria em múltiplos benefícios.
Desde logo, uma melhoria do acesso aos cuidados de saúde, especialmente para doentes crónicos, pessoas em contexto de cuidados domiciliários ou em regiões com escassez de profissionais, redução de burocracia, permitindo que médicos e outros profissionais concentrem o seu tempo em situações mais complexas, sem necessidade de validar prescrições de rotinas estabelecidas e aumento da rapidez na resposta, diminuindo tempos de espera e garantindo que os doentes tenham acesso imediato ao que necessitam.
A Ordem dos Enfermeiros tem defendido o alargamento da prescrição aos enfermeiros como um passo fundamental para a modernização do sistema de saúde. Esta evolução deve ser acompanhada por uma regulamentação clara, protocolos bem definidos e formação específica, assegurando que a prescrição seja realizada com segurança e dentro das suas competências.
E, obviamente, a implementação desta medida não pode ser apenas uma transferência de responsabilidades sem a devida valorização do trabalho. Se os enfermeiros passarem a prescrever, como julgo que será inevitável, assumindo uma responsabilidade adicional na cadeia de cuidados, essa função deve ser devidamente reconhecida. Tal como acontece com outros profissionais de saúde que exercem atos diferenciados, a prescrição deve refletir-se na carreira e no reconhecimento das competências adquiridas.
A experiência internacional mostra que este é um caminho viável. Em países como o Reino Unido, Canadá e Austrália, a prescrição por enfermeiros tem vindo a ser alargada, sempre com resultados positivos na qualidade dos cuidados e na eficiência dos serviços de saúde.
Esta tendência é reforçada por dados dos recentes relatórios da OCDE, como o Health at a Glance: Europe 2024 e o Patient-Reported Indicator Surveys (PaRIS), o maior inquérito internacional aplicado a utilizadores de serviços de saúde, que destacam o aumento do papel dos enfermeiros nos cuidados de saúde primários e na gestão de doenças crónicas.
Estes estudos indicam que, em vários países, os enfermeiros já podem prescrever tratamentos e solicitar meios complementares de diagnóstico, contribuindo para uma resposta mais rápida do sistema. Além disso, modelos de cuidados liderados por enfermeiros, incluindo a prescrição, estão associados a altos níveis de satisfação dos doentes e a um melhor acompanhamento da sua saúde.
A evidência internacional demonstra, assim, que esta evolução não só melhora o acesso aos cuidados como também promove um sistema de saúde mais eficiente e centrado no utente. Portugal precisa acompanhar esta tendência global e regulamentar a prescrição por enfermeiros, permitindo-lhes atuar de forma autónoma e contribuindo para a eficiência do sistema de saúde.
O alargamento da prescrição aos enfermeiros é, afinal, muito mais do que um reconhecimento de competências, assumindo-se como uma exigência para um sistema de saúde mais eficiente, acessível e centrado nas necessidades da população.