Doença oncológica: tratar a ferida maligna numa filosofia de cuidados paliativos


Helena Vicente

Enfermeira, Consulta Multidisciplinar de Estudo e Tratamento de Feridas do IPO Lisboa



As feridas malignas (FM) são uma realidade em Oncologia, o seu aparecimento e evolução estão intimamente relacionados com a fase avançada de doença oncológica. Resultam da infiltração de um tumor e/ou de metástases na pele, incluindo vasos sanguíneos e linfáticos.

As FM estão maioritariamente relacionadas com neoplasias da pele, mama, cabeça e pescoço e Otorrinolaringologia. A sua cicatrização, parcial ou total, é exclusivamente dependente da eficácia dos antineoplásicos para o tratamento da doença de base, caso contrário, estas continuam a progredir.

Podem atingir qualquer zona do corpo, desde as áreas mais íntimas até às mais expostas (e.g face). Fazendo parte do universo das feridas não cicatrizáveis, são comummente complexas, apresentam-se sob formas/dimensões incomparáveis e, na sua maioria, com sinais e sintomas de difícil controlo. A abordagem à pessoa com FM enquadra-se, portanto, numa filosofia de cuidados paliativos, cujo outcome é o conforto da pessoa e a sua melhor qualidade de vida possível.

Cuidar da pessoa com FM é complexo, pela especificidade da abordagem local per si, mas também porque determina e é determinada pela dinâmica do agravamento do estado de saúde global do doente.

Promover conforto e bem-estar à pessoa com FM e à sua família é, desta forma, um trabalho exigente, que começa com o conhecimento das prioridades da pessoa e a avaliação das suas expectativas face à FM, à sua doença e aos cuidados de saúde.

Numa atitude empática, mantendo a esperança realista, deve ser definido um plano de cuidados com objetivos alcançáveis e previamente discutidos com o doente, família e equipa, onde a comunicação acrescenta valor ao resultado.

O alcance do conforto da pessoa com FM exige um efetivo controlo de sintomas e as recomendações para o cuidado de doentes com feridas malignas (EONS, 2015), entre outras, reiteram essa necessidade.


Helena Vicente

O acrónimo HOPES sistematiza os principais sintomas presentes (i.e. hemorragia; odor; dor; prurido; exsudado abundante; infeção superficial) a considerar. Não obstante, reforça-se a ideia de que o profissional, ao posicionar-se perante a inatingível eliminação/redução dos sintomas, trace como objetivo central a aceitação, visando preservar e elevar a dignidade do doente e ajudá-lo a (con) viver com a FM.

O odor é disso um exemplo, sendo um sintoma major na FM. Com um impacto fortemente negativo e multidimensional, vai-se tornando-se mais crítico, especialmente quanto mais próximo da terminalidade.

De natureza multifatorial (e.g. presença de tecidos necróticos, excesso de bactérias e altos níveis de exsudado), o isolamento do exsudado dentro do penso é uma medida essencial ao seu controlo. Associam-se outras, como limpeza da ferida, trocas de penso frequentes, utilização de antisséticos e/ou antimicrobianos tópicos/sistémicos e absorventes do odor. São exemplos de aplicações tópicas: metronidazol, mel (e.g. manuka), prata ou iodo.

O exsudado abundante é outro sintoma major, cujo aumento está diretamente relacionado com a progressão da doença e com o crescimento da FM. Assim, o objetivo será conseguir um penso que faça uma boa selagem, evitando a fuga do exsudado para o vestuário e a inevitável perceção do mau odor. Esta gestão pressupõe a prévia compreensão do problema e a resposta às seguintes questões: saturação do penso? Fuga? Os dois?

As opções para a absorção são variadas: fibras gelificantes, superabsorventes (e.g. poliacrilatos), espumas, polímeros e pensos para incontinência (baixo custo/absorção eficaz).

As FM apresentam com frequência fragilidade tecidular, com uma forte probabilidade hemorrágica, o que pode ser severamente traumático para a tríade.

A hemorragia pode ser expressa em diferentes graus, desde pequenos focos hemorrágicos, por traumatismo com material de penso, até às hemorragias persistentes e/ou maciças e espontâneas, eventualmente fatais. Dependendo da situação, várias são as opções tópicas: esponjas hemostáticas, celulose oxidada, nitrato de prata, adrenalina, ácido aminocapróico, sucralfato e a utilização de películas de contacto de qualidade.

A presença de fístulas, prurido, dor, infeção e as relevantes questões estéticas de compromisso na autoimagem inerentes à FM são, igualmente, uma realidade complexa.

Confrontados pelos desafios da individualidade, da vulnerabilidade e com o sofrimento da pessoa com doença oncológica, bem como a imprevisibilidade e singularidade de cada FM, e pela inexistência de recursos materiais específicos dirigidos para estas feridas em particular, o enfermeiro obriga-se a recorrer à adaptabilidade do material disponível, adequando-o da melhor forma possível à complexidade da FM.

O recurso à criatividade, ao humanismo e à ética do enfermeiro impõe-se neste “fabricar” de penso à “medida da pessoa e da ferida”, onde todos os detalhes contam para responder às necessidades de conforto e bem-estar da pessoa. Medidas que ultrapassam amplamente a simplicidade pragmática e linear.



Artigo publicado na edição de fevereiro do Jornal Médico dos cuidados de saúde primários.

 

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