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Opinião

Desmistificando o diagnóstico de enfermagem


Pedro Melo

Especialista em Enfermagem Comunitária. Professor auxiliar convidado do Instituto de Ciências da Saúde / Escola de Enfermagem da Universidade Católica Portuguesa



Na transição de 2020 para 2021, decidi explorar convosco um mito que há 20 anos, quando comecei a exercer enfermagem, existia de uma forma muito intensa na comunidade clínica, principalmente, porque na científica já era algo mais esclarecido: existem diagnósticos de enfermagem?

Quando ainda estava no contexto académico, os professores de enfermagem pediam-nos que, nos vários contextos de ensino clínico, fossemos apresentando estudos de caso, onde explorávamos os planos de cuidados aplicando o processo de enfermagem.

O Processo de Enfermagem, método científico aplicado à decisão em enfermagem, descrito de forma mais objetiva desde a década de 50 do século XX, é um processo organizado de decisão, que começa por colher dados, tirar conclusões sobre esses dados, identificando necessidades nos utentes, prescrevendo intervenções e depois avaliando os resultados. Expliquei, claro, o processo de uma forma muito simples, ainda que seja um processo complexo.

Por curiosidade, o processo de enfermagem serviu de inspiração a outras áreas, nomeadamente, o processo de avaliação da qualidade, no âmbito da gestão. Por exemplo, William Deming apresentou o conhecido Ciclo da Qualidade (Plan, Do, Check, Action), inspirado no agricultor Walter Shewhart, que definiu uma estratégia de avaliação da qualidade dos processos agrícolas inspirado pela sua mãe, enfermeira, que o ajudou a sistematizar o processo de acordo com o Processo de Enfermagem (Avaliar, Decidir, Intervir, Reavaliar). Extraordinário como o universo liga pessoas e ciências.


Pedro Melo

Claro que, apesar de toda a formação académica, altamente assente na melhor evidência sobre o processo de enfermagem e o Diagnóstico de Enfermagem, quando comecei a trabalhar, há cerca de 20 anos, nos contextos clínicos, confrontei-me com uma realidade em que o termo “Diagnóstico de Enfermagem” era encarado, principalmente por outros profissionais, como um mito ou uma criação ilusória, quase que obra de Walt Disney, num conto de fadas inventado pelos enfermeiros.

Confesso que, na altura, um recém-formado, pronto a tomar decisões baseadas em tudo o que aprendeu de uma forma tão organizada, teve um estranho sentimento de psicose, confundindo realidades.

Seria o que aprendeu na escola sobre o Diagnóstico de Enfermagem realidade ou na realidade ele não existe como agora nos contextos o querem fazer crer?

Percebi que a realidade não era uma nem outra. Havia, de facto, duas verdades, distintas pela construção social que cada uma delas tinha como assente. Por um lado, profissionais de saúde que cresceram numa cultura antiquada, onde o sistema de saúde tinha como centro das decisões a doença, e, por outro, um conjunto de cientistas da enfermagem que tinham evidências de paradigmas transformistas que exigiam olhar para as pessoas, que seriam muito mais que doentes.

Optei por focar-me na segunda verdade, tornando-a a minha realidade, e percebi que a maioria dos enfermeiros com quem privei e tomei decisões em conjunto também a tinha como horizonte.

Sorrio, ainda hoje, quando percebo que, acima de tudo, quem ganha com esta realidade são os utentes dos sistemas de saúde (disse sistemas propositadamente!). Mas ainda não fugi ao título de hoje.

20 anos depois, afinal, o que é um Diagnóstico de Enfermagem? Várias organizações pelo mundo foram criadas para o traduzir e promover o seu desenvolvimento. A NANDA International (sedeada no Norte dos EUA), a Associação para Diagnósticos, Intervenções e Resultados da Enfermagem Europeia (ACENDIO), a Associação Francófona Europeia de Diagnósticos, Intervenções e Resultados de Enfermagem (AFEDI), ou mesmo a Associação Espanhola de Nomenclatura e Taxonomia e Diagnósticos de Enfermagem (AENTDE).

Em Portugal, a Associação Portuguesa de Enfermeiros, a Associação Católica dos Enfermeiros e Profissionais de Saúde (ACEPS) e, claro, a Ordem dos Enfermeiros têm trabalhado para o desenvolvimento dos Diagnósticos de Enfermagem, a última assente na própria regulação da profissão, definindo quem diagnostica o quê, de acordo com os diferentes perfis de enfermeiros e enfermeiros especialistas (um caminho em construção).

O Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN), organização de âmbito mundial que desenvolveu a Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE), através de grupos de trabalho com enfermeiros a uma escala global, tem desenvolvido esta classificação que se encontra parametrizada nos Sistemas de Informação na maioria dos contextos clínicos em Portugal.

Os enfermeiros usam-na para documentarem as suas atividades de diagnóstico (a avaliação dos dados do Processo de Enfermagem), os seus diagnósticos (quando decidem sobre esses dados e atribuem um juízo clínico a um foco de enfermagem), as suas intervenções (que prescrevem de acordo com os seus diagnósticos) e a mudança de juízos clínicos (quando reavaliam a evolução das pessoas baseadas nos dados).

Então, afinal, não é um mito, existem pessoas (indivíduos, famílias, comunidades, populações) que precisam de ser avaliadas, com a melhor evidência, por aqueles que não diagnosticam doenças, mas sim infirmezas. Focados, por isso, nos processos intencionais das pessoas (conhecimentos, crenças, valores, etc.), nos processos não intencionais (os fisiológicos ou as emoções) e nos processos de interação com o ambiente (a casa, a cultura, a família, as políticas…): os enfermeiros.

São os enfermeiros os únicos e insubstituíveis profissionais que usam a ciência de Enfermagem para desenvolver o Diagnóstico de Enfermagem que, no limite, diagnostica o processo de ser Pessoa, promovendo a sua felicidade e a gestão da sua vida, seja doente ou não.


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