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Opinião

«A síndrome do soldadinho»


Miguel Guimarães

Bastonário da Ordem dos Médicos



Conta-se muitas vezes uma história de uma parada em que todos os soldadinhos caminhavam na mesma direção, com exceção de um, que marchava em sentido contrário e que dizia aos companheiros que estavam todos errados.

É certo que não é o simples facto de estarmos isolados nas nossas posições que determina ou que deve determinar a sensatez das nossas convicções. Contudo, quando o tema é a pandemia, é essencial que aprendamos com a experiência dos outros países, que estejamos dispostos a ouvir e acompanhar os desenvolvimentos, e a adaptar, sempre que necessário, o caminho que escolhemos seguir.

O Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 é um dossier crítico para todo o mundo e fundamental para que o nosso país recupere mais rapidamente, em termos de saúde e economia, pelo que não se compadece com decisões que tardam em mudar e que deixam os médicos e outros profissionais de saúde mais desprotegidos.

Deixar de fora deste plano quem já esteve infetado pelo SARS-CoV-2, muito em particular quem está mais exposto ao risco, como os profissionais de saúde, ou quem é mais vulnerável, como os nossos idosos, é negar o que os estudos nos mostram. Infelizmente, a imunidade de quem já esteve doente não é garantida, como se pensava há um ano.

Numa altura em que a medicina e a ciência saem claramente valorizadas, é crítico que apoiemos as medidas que tomamos em evidência científica e, por isso, encaro com muita dificuldade, e até alguma revolta, que Portugal persista em decisões erradas e que não são mera política, já que em causa estão vidas, vidas que podem ser as de todos nós e as dos que nos são mais próximos.

Recentemente, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) publicou um relatório que avaliava a implementação dos planos de vacinação contra a covid-19 dos diferentes países e em que se destacava que Portugal e a Islândia são os únicos países que ainda não estão a incluir as pessoas que estiveram previamente infetadas pelo SARS-CoV-2 nos grupos a imunizar.


Miguel Guimarães

Esta preocupação tem vindo a ser expressa pela Ordem dos Médicos, mas os reiterados apelos a uma rápida revisão da norma da Direção-Geral da Saúde que impede a vacinação de quem já teve covid-19 ainda não surtiram efeito.

Como bastonário, alertei desde o primeiro momento para a necessidade imperiosa de vacinar todos os médicos e disponibilizei-me para ajudar a identificar os que estavam a ficar de fora, em particular os que já não estão vinculados ao Serviço Nacional de Saúde, mas que exercem uma medicina de proximidade em pequenos consultórios e clínicas.

Com a mudança da coordenação da Task-Force, fomos finalmente ouvidos e o Senhor Vice-Almirante Henrique de Gouveia e Melo confiou à Ordem dos Médicos toda a operacionalização do processo.

Já conseguimos levar a vacina a mais de 4200 médicos de todo o país, mas a norma da DGS obrigou-nos a deixar de fora mais de 500 médicos, porque já tiveram doença covid-19, muitos deles há mais de 6 meses.

A pandemia tem-nos levado a tomar algumas decisões ainda em cenário de incerteza, mas desta vez temos já evidência científica suficiente para percebermos que o risco de reinfeção é real e que mesmo em quem teve formas graves da doença é possível acontecer uma nova infeção em prazos que não conseguimos determinar.

É urgente que se reveja a norma para podermos incluir todas as pessoas que já tiveram covid-19 nas fases de vacinação que lhes estariam por natureza destinadas. A Task-Force anunciou que estaria para breve este alargamento aos que têm mais de 60 anos, mas isso continua a deixar um grande número de profissionais de saúde de fora, arriscando, mais uma vez, as suas vidas.

Recorde-se que a revista Lancet acaba de publicar um estudo que concluiu que, apesar de a infeção dar alguma proteção contra a reinfeção em jovens adultos, a verdade é que não os imuniza na totalidade, sendo necessária a vacina contra a covid-19 para aumentar a resposta imunitária.

O estudo resultou da observação de mais de 3000 elementos saudáveis dos fuzileiros dos Estados Unidos da América, a maioria com idade entre os 18 e os 20 anos, entre maio e novembro de 2020. Da análise feita durante esse período, cerca de 10% dos fuzileiros anteriormente infetados com o novo coronavírus foram reinfetados.

Também um estudo a que a Ordem dos Médicos se associou, coordenado pelo médico Álvaro Carvalho, caracterizou a resposta imunitária de mais de 600 portugueses que tinham tido covid-19 na primeira vaga da pandemia, há um ano.

Logo na primeira determinação, três meses após a doença, 23% não tinham anticorpos. De acordo com o ECDC, há países que estão a optar por cumprir o esquema vacinal de duas doses a quem já esteve infetado, sendo que outros países estão a optar por apenas uma dose. Só Portugal e a Islândia, quais soldadinhos, continuam a marchar sozinhos, fechando os olhos aos trabalhos que documentam um risco crescente de reinfeção após os 90 dias.



Artigo publicado no jornal Hospital Público de abril/maio.

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