KRKA

«Fim à Mutilação Genital Feminina» envolve profissionais da saúde, educação e autarquia

“O médico e o enfermeiro de família devem estar atentos aos sinais e sintomas que podem indiciar um caso de mutilação genital feminina (MGF)” – o apelo é feito por Ana Carmona e Helena Capelão, enfermeiras especialistas, respetivamente, em Saúde Materna e Obstétrica e Enfermagem Comunitária.

As enfermeiras pertencem à Unidade de Saúde Pública (USP) do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) da Amadora e integram o projeto “Práticas Saudáveis: Fim à Mutilação Genital Feminina”.


Etelvina Calé, Helena Capelão e Ana Carmona

Para Etelvina Calé, coordenadora da USP Amadora, este é um combate que não pode parar. “É um crime, que tem consequências graves na saúde da mulher e que não pode ser silenciado.” Como acrescenta, “a prevenção é fundamental e exige um trabalho conjunto de diferentes entidades.”

Amadora: Protocolo Integrado para a Intervenção na MGF/C


Este projeto visa o desenvolvimento de uma intervenção integrada por parte das unidades de Saúde Pública (USP) e começou por abranger as USP de Almada-Seixal, Amadora, Arco Ribeirinho, Loures-Odivelas e Sintra, tendo-se já expandido às USP de Cascais, Estuário do Tejo, Lisboa Central, Lisboa Ocidental e Lisboa Norte.

Conta com a parceria do Alto Comissariado para as Migrações, da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, da ARS de Lisboa e Vale do Tejo e ainda de algumas IPSS e ONG. Deste projeto nasceu, no Município da Amadora, o Protocolo Integrado para a Intervenção na MGF/C.

Tendo iniciado a sua atividade em novembro de 2018, foi possível realizar 68 ações formativas em 2019, antes do início da pandemia, abrangendo 1176 profissionais da área da saúde, da educação e da autarquia (ACES Amadora, docentes e não docentes, técnicos de autarquias e alunos do Ensino Superior).



Consequências imediatas e a longo prazo

“Não podemos ficar parados perante esta prática, que vai contra os direitos humanos e que deixa marcas para sempre”, enfatiza Helena Capelão, especificando:

“As consequências físicas do ´fanado` podem ser imediatas ou a longo prazo. A utilização de lâminas não esterilizadas pode provocar, a curto prazo, infeções e hemorragias graves. Posteriormente, com o avançar da idade, podem surgir fístulas geniturinárias, dor pélvica crónica, ausência de prazer sexual, disfunção sexual e infertilidade”.

As consequências vão mais longe. Conforme explica a enfermeira, aumenta ainda a probabilidade de um parto distócico, com complicações associadas, como lacerações perineais, hemorragia pós-parto e maior morbimortalidade infantil. Em termos de Saúde Mental, "são predominantes os casos de perturbação da ansiedade, depressão e stresse pós-traumático".

Por que se deve estar alerta nas consultas

Os sinais de que a criança foi vítima de mutilação genital feminina não têm de ser os mais evidentes, podendo tratar-se apenas do que, à primeira vista, possa parecer um eritema da fralda, após uma viagem a países onde esta prática é comum, mesmo sendo ilegal: Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e Senegal, entre outros.

Daí que, como sublinha Ana Carmona, seja necessário formar médicos e enfermeiros em relação a esta matéria, porque o olhar atento pode fazer toda a diferença. “Como prestam cuidados de saúde familiar e conseguem uma maior proximidade com a utente e a família, é fundamental saber intervir”, sublinha Helena Capelão.

Primeiramente, deve-se dar especial atenção a quem tem família oriunda de países onde a MGF ainda é praticada, suspeitando-se de viagens que surgem, sobretudo, quando a criança ainda tem pouco meses, ou quando se encontra no período de aulas. Mas não só:


Ana Carmona

“Os professores que já tiveram formação têm estado a encaminhar situações de meninas com dores abdominais e que têm dificuldade em estar sentadas. Por vezes, elas negam que tenham sido sujeitas a esta prática. Pode ser por não saberem do que lhes sucedeu, quando ainda eram bebés, ou então porque já sabem que os pais podem ser condenados e presos.”

Face a um tema tão sensível, Helena Capelão frisa que o médico e o enfermeiro não devem falar diretamente do tema, sendo necessário dar um passo de cada vez, para que se evite uma possível fuga. Na verdade, “há quem não volte às consultas. Temos que criar, primeiramente, uma relação
de confiança”.

Posteriormente, é preciso tratar, prevenir outros casos, nunca deixando de indicar o sucedido no “Registo de Saúde Eletrónico - Portal do Profissional” (RSE-PP).

O facto de ser uma ideia enraizada e transmitida de geração em geração, em que a MGF é vista como um ritual de passagem de menina a mulher, pré-requisito para o casamento e para controlar a sexualidade da mulher, acaba por se tornar também um “enorme desafio”.


Helena Capelão

“Não é fácil mudar este tipo de ideias, que estão generalizadas nalgumas comunidades. Ao contrário do que é habitual pensar-se, não existem razões religiosas. O fenómeno tanto se verifica em comunidades muçulmanas como cristãs, judaicas, animistas e até ateístas. Acreditam que é a única maneira de as mulheres serem puras e aceites pelos homens e pela sociedade”, afirma Helena Capelão.

Ana Carmona acrescenta que é necessário também envolver os homens: “É preciso transmitir a ideia de que é melhor para eles ‘estarem com’ uma mulher não mutilada, desconstruindo a crença de que são ‘mais homens’ se aceitarem a MGF. Eles são, sim, mais importantes se conseguirem fazer uma mulher feliz.”

Os profissionais envolvidos garantem que não vão deixar de lutar contra a mutilação genital feminina, ou não constituísse esta um dos crimes abrangidos pela Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não-Discriminação 2018-2030 – Portugal + Igual.

“Cada menina conta”

A acompanhar as iniciativas realizadas tem estado Margarida Paixão, médica de Saúde Pública, que também fez parte do projeto “Práticas Saudáveis: Fim à Mutilação Genital Feminina”. Não tendo abordado muito esta temática na faculdade, admite que achava que a dimensão do problema era muito menor. Mas, na prática, “quanto mais procuramos mais casos encontramos”.


Atualmente, não pertence à USP Amadora, mas ainda integra a Associação de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde (AJPAS), na Amadora, e é consultora da Organização Mundial de Saúde. “A deteção é importante para prevenir outros casos – de filhas, sobrinhas, irmãs – e para poder dar respostas a eventuais necessidades de saúde que existam”, reitera.


Margarida Paixão

“E, apesar de cada caso ser diferente (e a observação ginecológica poder ser difícil), retiro da nossa experiência a lição de que muitas têm histórias ou indicadores de risco/perigo semelhantes ao que se encontra descrito na literatura”, acrescenta.

Sendo uma das médicas que dá apoio à Associação, recorda que o trabalho multidisciplinar é a única maneira de enfrentar esta problemática, porque “cada menina conta”.

Dados sobre a MGF em Portugal


– Em 2015, existiam 5246 mulheres em idade fértil submetidas a MGF, maioritariamente da Guiné-Bissau (91%), Guiné Conacri (3%) e Senegal (2%).

– Entre abril de 2014 e dezembro de 2017, foram registados 237 casos de MGF. Todos os registos foram introduzidos por unidades da Região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. A média de idades atual destas mulheres é de 31 anos, variando entre os 14 e os 64 anos. Em 80% dos casos estas mutilações foram efetuadas até aos 9 anos de idade.

– No mesmo período, de acordo com os registos, todas estas práticas foram realizadas fora de Portugal. Foram registados 88 casos de mulheres com complicações.

– Lisboa é a região do país com maior número de mulheres em risco.

seg.
ter.
qua.
qui.
sex.
sáb.
dom.

Digite o termo que deseja pesquisar no campo abaixo:

Eventos do dia 24/12/2017:

Imprimir


Próximos eventos

Ver Agenda