«Por que não se fala da falta de enfermeiros de família?»
Filipa Cartaxo
Enfermeira de família, ULS de Coimbra. Presidente do Encontro da Primavera da USF-AN 2025
A saúde é um direito humano universal que, no entanto, atualmente, vemos questionado. Efetivamente, o Sistema de Saúde, globalmente, e, em particular, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) estão no centro da atividade noticiosa. Emergem nos diversos meios de comunicação social inúmeras notícias alusivas aos problemas do SNS, referentes a reformas estruturantes e impactantes sobre este, com impacto direto também para o cidadão e para a sociedade no global.
A gestão dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) no modelo ULS (Unidades Locais de Saúde), a generalização do modelo B, sem equipas de acompanhamento de proximidade, a inclusão de parcerias público-privadas (PPP) nos CSP, a revisão dos critérios e condições para a atribuição dos incentivos financeiros, a alteração no acesso aos cuidados de saúde, em caso de doença aguda, ou a desvalorização dos profissionais são medidas que, no mínimo, nos devem conduzir a uma reflexão e discussão. O raciocínio científico, tão caro à Saúde, tem que ser claro no diagnóstico dos desafios do SNS, para mostrar uma visão objetiva do caminho a seguir.
Efetivamente, torna-se difícil ultrapassar as pressões atuais e conduzir medidas que evoluam para um paradigma de prestação de cuidados mais abrangentes e inclusivos. Nesse sentido, torna-se imperioso ter coragem de adotar novos métodos de trabalho e estruturas que apoiem quer os profissionais, quer os utentes.
Filipa Cartaxo
Torna-se imperioso ter coragem de adotar novos métodos de trabalho e estruturas que apoiem quer os profissionais, quer os utentes
Conhecemos o problema, temos consciência das medidas de resolução identificadas, mas, então, o que falta? Falta, de facto, o que habitualmente falta na vida pessoal de cada cidadão: decisões efetivas baseadas nas necessidades identificadas previamente. Todavia, quando as decisões têm impacto sobre todos, como são as decisões políticas, não é aceitável que os decisores políticos apenas façam parte da notícia e façam aplicar as medidas. É preciso que prestem, também, contas dos seus resultados. Não se pode continuar a aceitar que o enfoque do SNS seja no tratamento da doença. Antes pelo contrário, urge que ela seja, o mais possível, evitada. Os hospitais têm de ser porta de saída e não de entrada.
Por conseguinte, os centros de saúde, independentemente da forma como se encontram organizados, têm de ser forçosamente aquilo que é previsto serem: um local de enfoque na Saúde. Têm de ser um local de promoção da saúde, um local de vigilância e acompanhamento dos indivíduos e famílias que, fundamentalmente, previna a doença, um local que responda às reais necessidades da comunidade.
Nesse seguimento, vejo com alguma apreensão e muita inquietação a forma como o Governo é tão ágil a restringir o acesso à saúde (nomeadamente, na doença aguda), mas, simultaneamente, tem tanta dificuldade em criar condições para melhorar o acesso aos cuidados de saúde e à qualidade destes. Agravado por termos conhecimento que estas decisões foram tomadas sem dados concretos que suportassem a implementação de tais medidas.
Por outro lado, se o país investe tanto na formação de enfermeiros de família, como é que se pode ouvir falar tanto em falta de médicos de família e não se fala da falta de enfermeiros de família? Surpreende que esta lacuna exista, como se o trabalho de complementaridade dos diferentes profissionais de Saúde não fosse uma mais-valia para dar resposta às necessidades de atendimento e permitir ganhos em saúde. Afinal, como estão a ser geridos os recursos humanos? Que culturas organizacionais existem, ao ponto de não se recorrer à especialização dos profissionais como um fator major para a prevenção da doença e a promoção da saúde?
Será que faltam recursos humanos no SNS? Provavelmente faltarão. Mas não faltará sobretudo uma gestão efetiva que seja capaz de reter talento dentro das unidades e convertê-lo em mais-valia para a saúde dos portugueses? E porque é que nos encontramos com um número cada vez mais elevado de profissionais cansados e muitos até em burnout? O que está a falhar? Temos dos melhores sistemas de Saúde da Europa, temos profissionais altamente especializados, temos das melhores investigações quer ao nível da Saúde, quer de outras áreas. Então o que leva a este cenário na Saúde?
É tempo de maior organização e de investir naquele que é o pilar que garante a sustentabilidade do SNS – os CSP!
É neste contexto de dúvidas crescente, que causam alguma insatisfação aos profissionais de Saúde e aos utentes (que veem o seu direito de acesso à Saúde fragilizado), que o Núcleo de Coimbra da USF-AN (Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar) promove mais um Encontro da Primavera da USF-AN intitulado – “USF: do desempenho à sustentabilidade”. Será um evento dedicado a todos os profissionais que querem ser uma voz ativa na discussão das respostas aos desafios que as USF encontram atualmente.
Assim, com foco nos profissionais, vamos discutir talento e bem-estar, não esquecendo as questões do dia-a-dia relacionadas com a avaliação de desempenho das equipas e a resposta em situações de doença aguda. Convidamos todos os profissionais de Saúde, gestores, académicos e defensores dos CSP a juntarem-se a nós, no dia 4 de abril, no Biocant Park, em Cantanhede.
É tempo de tomar decisões efetivas mas, em simultâneo, cientificamente validadas, que possam traduzir-se em ganhos para todos os cidadãos e para os profissionais que incorporam as organizações de Saúde, particularmente na área dos Cuidados de Saúde Primários.
É tempo de maior organização e de investir naquele que é o pilar que garante a sustentabilidade do SNS – os Cuidados de Saúde Primários!