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Opinião

Úlceras por pressão: apoiar os familiares cuidadores e «prevenir um flagelo desvalorizado»


Filomena Sousa

Enfermeira, Serviço de Ortopedia do Hospital da Prelada. Mestre em Ciência de Enfermagem. Coordenadora do Grupo de Trabalho para as Úlceras de Pressão da Associação Portuguesa de Tratamento de Feridas.



As úlceras por pressão são um flagelo com grande impacto ao nível da segurança e qualidade de vida dos indivíduos, dos seus familiares e cuidadores, ao nível da sociedade e com encargos financeiros elevados.

A estrutura social de apoio a uma população cada vez mais envelhecida e/ou com comorbilidades associadas ao aumento da esperança de vida e ao desenvolvimento científico e técnico na área da saúde, que permite uma maior taxa de sobrevida relacionada com condições clínicas ou traumáticas que até há poucos anos não seria possível.

Facilmente se pode depreender que as estruturas sociais de apoio devem ir de encontro a essa realidade (Wilson, Caswell, & Turner, 2018).

O paradigma atual dos sistemas de saúde, a nível internacional, tende a que, cada vez mais, o indivíduo com doença crónica e prolongada seja cuidado em contexto domiciliário. Assim sendo, há cada vez mais necessidade de recrutar os cuidados do cuidador familiar. Este é um cuidador que não tem formação específica para cuidar de alguém dependente e para cuidar de si próprio. O que se traduz muitas vezes num processo de angústia, stress e cansaço físico e emocional, para além de consequências na sua própria saúde.

A realidade do recrutamento de familiares ou pessoas significativas para cuidar de indivíduos doentes é cada vez maior e requer conhecimentos, habilidade e atitudes do cuidador familiar, que têm de ser ensinadas e treinadas pelos profissionais de saúde, nomeadamente a Enfermagem, no sentido da obtenção do melhor cuidado possível e da qualidade de vida de todos os intervenientes.

O ser familiar cuidador e o papel dos profissionais de saúde

A falta de conhecimento é o problema mais relatado e reconhecido pelos prestadores de cuidados e que esse reconhecimento lhes trazia uma elevada sensação de impotência e um sentimento de culpa por incompetência.

As habilidades ou competências são tidas como um comportamento bem organizado, intencional e dirigido para determinado objetivo com recurso ao mínimo esforço possível por parte dos intervenientes e com os melhores resultados esperados (Ferreira, Rodrigues, & Ferre, 2015), (Schumacher, Stewart, Archbold, Dodd, & Dibble, 2000).

As habilidades do prestador de cuidados tornam-se, neste contexto, um conceito com uma importância relevante para a prática clínica de Enfermagem e para a investigação.

Papel do familiar cuidador: “interagir de acordo com as responsabilidades de cuidar de alguém; interiorizar a expectativa mantida pelas instituições de cuidados de saúde e profissionais de saúde; membros da família e sociedade relativamente aos comportamentos apropriados ou inapropriados do papel de um prestador de cuidados; expressar estas expectativas sob a forma de comportamentos e valores; sobretudo relativamente a cuidar de um membro da família dependente” (ICN, 2017).

Enquanto em contexto domiciliário, torna-se mais difícil, por razões de vária ordem, nomeadamente o baixo rácio nacional enfermeiro/doente, às equipas de saúde, nomeadamente à Enfermagem, prevenir complicações associadas ao estado de saúde de cada indivíduo e sua família.

Assim, torna-se impreterível que, cada vez mais, o poder decisor e os próprios profissionais de saúde vejam os cuidadores familiares como parceiros no cuidar e, como tal, integrantes da equipa que tenta conseguir os objetivos do cuidar daquele indivíduo em particular.


Filomena Sousa

É essencial uma abordagem holística

Uma das complicações mais frequentes, quando há associada uma grande debilidade física que impede ou restringe a mobilidade do indivíduo, é a úlcera por pressão. Esta é uma lesão que pode conduzir à morte e que muitas vezes é subvalorizada, mesmo pelos próprios profissionais de saúde. O paradigma do tratamento ainda vence o da prevenção e há que, em nosso entender, inverter este sentido.

Cerca de 80% dos indivíduos confinados ao leito, quando em contexto domiciliário, e com limitações da mobilidade, acabam por desenvolver úlcera de pressão. Um estudo comparativo permitiu concluir que o treino do prestador de cuidados quanto à prevenção de úlceras de pressão foi eficaz na melhoria das práticas do cuidador e na redução dos fatores de risco associados a este tipo de lesão (Kaur, Singh, Tewari, & Kaur, 2018).

As úlceras de pressão constituem um problema de saúde significativo porque colocam em causa a segurança do indivíduo, alteram a sua qualidade de vida, aumentam as comorbilidades e o risco de mortalidade, assim como aumentam os encargos financeiros para o sistema de saúde (Hoogendoorn, Reenalda, Koopman, & Rietman, 2017).

Úlcera de pressão: “uma lesão da pele e/ou tecidos subjacentes, normalmente sobre uma proeminência óssea, devido ao efeito de forças de pressão e cisalhamento ou de uma combinação entre estas. Existem ainda vários fatores contribuintes e de confusão cujo papel ainda não se encontra totalmente esclarecido” (National Pressure Ulcer Advisory Panel, European Pressure Ulcer Advisory Panel, & Pan Pacific Pressure Injury Alliance, 2014).

O conhecimento dos mecanismos etiológicos e os fatores contribuintes para o seu aparecimento assim como uma abordagem holística dos indivíduos são essenciais para a sua prevenção e deteção precoce, diminuindo ou evitando todo o impacto negativo e riscos para o indivíduo e pessoas significativas (Hoogendoorn et al., 2017).

Os mecanismos etiológicos podem contribuir, de forma isolada ou em conjunto, para o desenvolvimento da lesão. Cada mecanismo etiológico traz, consequentemente, necessidades de intervenções diferenciadas para a prevenção.

A prevenção deste tipo de lesão é complexa, pois, tem de ter em consideração os vários fatores que interferem no seu desenvolvimento, quer no que diz respeito ao efeito das forças físicas externas e os stresses internos sobre os tecidos, quer no que diz respeito à própria tolerância dos tecidos ao efeito dessas forças e mesmo às características anatómicas das estruturas envolvidas e que podem variar de indivíduo para indivíduo (Hoogendoorn et al., 2017).

A ciência básica tem demonstrado que o desenvolvimento das úlceras de pressão pode originar-se ao nível da pele e atingir estruturas anatómicas que podem incluir dano do tecido muscular e tendinoso, ou podem originar-se nas camadas internas, como o tecido muscular, e progredir até à lesão da pele ou esta nem sequer ser atingida. Os mecanismos etiológicos envolvidos são habitualmente múltiplos, no entanto, a origem da lesão e a sua evolução têm o domínio de um desses mecanismos.

O tecido muscular pode tolerar períodos prolongados de isquemia, mas é mais sensível ao dano causado pelos fenómenos de revascularização e consequente libertação de radicais livres e a fenómenos de deformação do citoesqueleto devido à aplicação de forças mecânicas que conduzem a stresses internos intensos, levando à deformação da membrana citoplasmática ou à sua total destruição, impedindo as trocas metabólicas e causando a morte celular.

Este mecanismo etiológico é mais severo e mais rápido a causar dano que o processo isquémico em si ( Jagannathan & Tucker-Kellogg, 2016).

Os estudos epidemiológicos sobre incidência e prevalência deste tipo de lesão em contexto domiciliário são escassos. Um estudo brasileiro estimou que a incidência de úlceras de pressão em contexto domiciliário se situa nos 20%, numa população de alto risco que ronda os 70% (De Paula Chaves Freitas & Alberti, 2013).

Outros autores afirmam que, neste mesmo contexto de cuidados, a incidência deste tipo de lesão pode atingir os 17% (R. Bernabei, E. Manes-Gravina, 2011). Em Portugal, desconhece-se a verdadeira realidade quanto ao número de indivíduos em alto risco de desenvolvimento de úlceras de pressão, quais os fatores de risco que mais contribuem para esse risco, qual a prevalência e incidência destas lesões e quais os recursos fornecidos pela sociedade e pelo sistema de saúde português para dotar o cuidador de competências, habilidades e conhecimentos requeridos para o cuidar dependente no sentido da prevenção de úlceras de pressão.

O sistema atual de se manter o indivíduo com doença crónica o maior tempo possível em contexto domiciliário implica não só o recrutamento do familiar cuidador, a sua formação e treino para o cuidar, a promoção constante de intercâmbio com a equipa de saúde, mas também que a sociedade lhe proporcione as condições necessárias para que possa assumir esse papel.

Temos de ter em consideração que estes familiares são muitas vezes apanhados desprevenidos e “empurrados” para este papel por uma sociedade que ainda se rege por questões culturais, sem nenhuma preparação prévia e, muitas vezes, sem condições para, por exemplo, se desempregarem para assumir o papel de cuidador a tempo integral (Ferreira et al., 2015).

O empoderamento dos familiares cuidadores faz parte das funções de Enfermagem

No nosso entender, há ainda um longo caminho a percorrer no sentido de alterar paradigmas de atuação. Este caminho tem e deve ser feito começando pela mudança de atuação dos poderes decisores, de forma a investir mais na prevenção da doença e das complicações associadas à cronicidade e à imobilidade, nomeadamente as úlceras por pressão, aumentando, por exemplo, o rácio de profissionais.

Esta mudança também tem de partir dos profissionais de saúde, que devem acompanhar e evidência científica e a mudança da sociedade e dos sistemas de saúde. Devem eles próprios também investigar e contribuir para a tal mudança de paradigma e para a melhoria dos cuidados que prestam.

O empoderamento dos familiares cuidadores faz parte das funções de Enfermagem. Tendo por base a Teoria dos Sistemas de Enfermagem, inserida na Teoria do Déficit de Autocuidado de Orem, este é um papel importante, um papel de ensino e treino, um papel de acompanhamento contínuo e de evolução para que os cuidados sejam os mais eficazes e os que mais respondam aos objetivos do indivíduo e também para que o familiar cuidador se sinta seguro e possa ele próprio cuidar de si mesmo.

A sociedade tem que encontrar estratégias de apoio às famílias que têm a seu cargo indivíduos dependentes e em alto risco de desenvolvimento de úlceras por pressão. Cabe aos membros dessa mesma sociedade exigir as condições necessárias para acompanhar as mudanças impostas pelo poder decisor. Para isso, a formação e a informação das populações é de vital importância.

Todos em conjunto podemos prevenir um flagelo escondido e desvalorizado, que traz consigo um sofrimento emocional e físico tremendos, traz limitações sociais, familiares e culturais e elevados encargos financeiros e pode conduzir à morte.

Na prevenção está a solução.

Nota: Bibliografia disponível mediante pedido.



Artigo publicado no Jornal Médico dos cuidados de saúde primários

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