Opinião
«Cuidados de Saúde Primários: o fosso profundo entre promessas e a realidade»
André Biscaia
Presidente da USF-AN (Artigo desenvolvido com a colaboração de Carla Gouveia e Fabrizio Cossutta e dos Corpos Sociais da USF-AN)
As Unidades de Saúde Familiar (USF) são das inovações na saúde que maior consenso geram em Portugal quanto à sua adequação como modelo de prestação de cuidados e de exercício profissional.
Há um antes e um depois nos indicadores relacionados com os Cuidados de Saúde Primários (CSP), colocando o nosso país nas posições cimeiras da OCDE e melhorando a satisfação da população utente.
A recente conquista do fim das quotas para USF-B alcançada pela USF-AN constitui mais um marco histórico, proporcionando um melhor regime remuneratório para todos os profissionais a exercer em USF.
Apesar desta evolução, tem sido difícil reter profissionais de saúde no Serviço Nacional de Saúde (SNS), fruto de políticas erráticas, como a mudança da parte variável do modelo remuneratório das USF, a generalização das Unidades Locais de Saúde (ULS), agravada por ter sido feita segundo um modelo que não mostrou resultados e de um modo atabalhoado, a criação de uma Direção Executiva do SNS sem pernas para andar e que não deu, até à data, condições para a atividade de estruturas fundamentais no apoio às USF como a Equipa Nacional de Apoio - ENA.
Temos, agora e ainda, um Ministério da Saúde tomado por uma deriva de privatização de serviços, focado nos serviços de Urgência e que nada fez de positivo para os CSP.
O atual Plano de Emergência e Transformação na Saúde confirmou ser manifestamente inadequado face aos desafios presentes. Para os CSP, as medidas são essencialmente decorativas. Torna-se imperativa a implementação de uma estratégia de longo prazo, fundamentada em evidências científicas, que assegure a sustentabilidade do SNS.
É crucial desenvolver uma visão holística e integrada da saúde, evitando medidas que possam fragilizar o SNS ou resultar no desvio de recursos para o setor privado.
A USF-AN, mantendo o seu papel ativo, propõe um conjunto de medidas fundamentais para minimizar o fosso entre promessas dos sucessivos ministérios da Saúde e a realidade.
Em primeiro lugar, defende-se a garantia de uma equipa completa de saúde familiar para todos os portugueses e residentes, a exercer em condições otimizadas em USF, com ratios
de um Secretário Clínico/um Enfermeiro de Família/um Médico de Família nas USF. Esta personalização dos cuidados é essencial para que cada utente seja acompanhado por uma equipa que o conhece e que este reconhece como sua.
A revisão do modelo das ULS apresenta-se como outra prioridade, dado o seu impacto negativo na autonomia das USF e nas condições de atividade dos diretores clínicos para os CSP.
Propõe-se que as nomeações dos Conselhos de Administração assentem em critérios explícitos e baseados, acima de tudo, na competência, e que sejam complementadas por uma gestão técnica e organizativa, com equipas dedicadas a cada área de cuidados – CSP e hospitais – que emerjam dos pares e com orçamentos blindados. Devem ter financiamento e indicadores de desempenho que promovam o alinhamento e a integração de cuidados.
Os CSP desempenham um papel preponderante na prevenção de doenças, na abordagem das mesmas e na redução de custos, seja com a utilização de serviços hospitalares, internamentos, gastos com medicação, exames complementares, ou tratamentos complexos. Um funcionamento otimizado destes cuidados traduz-se não só em significativa redução de custos do sistema de saúde, mas também em melhorias substanciais na qualidade de vida das populações.
Adicionalmente, são necessárias medidas urgentes para atrair e reter profissionais de saúde no SNS, incluindo a criação de mapas de vagas adequados (abrir e manter abertas
todas as vagas necessárias), assegurando progressão nas carreiras (concursos nacionais, atempados e céleres), valorização salarial e melhoria das condições laborais (medidas específicas para secretários clínicos e enfermeiros de família pecam por tardias e são fundamentais – terão artigos dedicados no Jornal Médico nos próximos meses!).
A saúde mental dos profissionais merece a atenção necessária, sendo fundamental promover ambientes de trabalho seguros e apoiar as equipas.
Paralelamente, é fundamental aprovar o perfil de competências e funções dos secretários clínicos, valorizando e simplificando os processos administrativos. Estes profissionais, cujas funções especializadas são frequentemente subvalorizadas, necessitam de uma carreira própria que reconheça adequadamente a sua formação e dedicação. Enquanto esta carreira não se concretiza, devem ser implementados incentivos que reconheçam o desempenho e assegurem o desenvolvimento profissional.
A especialidade de enfermagem na área de saúde familiar merece particular destaque, abrangendo áreas cruciais na promoção da saúde, na prevenção da doença e no
acompanhamento contínuo das famílias ao longo do ciclo de vida, como planeamento familiar, vigilância materno-infantil, gestão de doenças crónicas, vacinação, rastreios e acompanhamento domiciliário.
Esta especialização, com as suas características únicas, tem de ser incentivada com medidas decisivas e concretas, que a USF-AN vem ao longo dos anos defendendo, com o reconhecimento e valorização dos enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Familiar, sublinhando a sua relevância no reforço dos cuidados primários e na sustentabilidade do SNS.
Quanto ao Programa Nacional de Vacinação, é crucial preservar a sua integridade, evitando medidas desadequadas, como a transferência da vacinação para farmácias. Colocar farmácias a vacinar e enfermeiros a distribuir fraldas é de tal forma absurdo que só pode levar a uma reversão urgente.
A USF-AN, através do seu estudo «O momento atual da reforma dos CSP em Portugal» de 2024, apresentou um relatório abrangente das necessidades das equipas em todo o território continental. O compromisso da USF-AN mantém-se: continuar a apresentar propostas fundamentais para a melhoria da saúde em Portugal.
Ao longo dos últimos 16 anos, a USF-AN tem construído pontes para ultrapassar o fosso entre as promessas políticas e a realidade no terreno. Tem contribuído na proposta de medidas reais, exequíveis, baseadas em evidências para a melhoria da Saúde em Portugal e continuará sempre disponível.
Este trabalho persistente visa aproximar profissionais do terreno, gestores e políticos, materializando as medidas necessárias para garantir uma saúde digna e acessível a todos.
A USF-AN nunca desistirá do SNS!
O artigo pode ser lido na edição de fevereiro do Jornal Médico.