«Os miúdos são fora de série. São os melhores doentes que poderíamos desejar ter»

A pediatra Hercília Guimarães foi distinguida, esta sexta-feira, durante o último dia do Congresso Nacional de Pediatria, com o Prémio Carreira SPP 2025. Coube a Maria do Céu Machado, que também já recebeu esta distinção, a missão de apresentar a galardoada com a distinção mais relevante da Sociedade Portuguesa de Pediatria.

“Eu gosto de qualquer área da Pediatria, mas foi a Neonatologia que sempre me fez sentir realizada”

Hercília Guimarães nasceu em casa, embora o parto tenha sido acompanhado por um obstetra. Foi no dia 28 de janeiro de 1953, exatamente no local de trabalho do pai, um dos quatro militares da Marinha de Guerra Portuguesa colocados na Estação Rádio Naval de Apúlia, no concelho de Esposende, e que tinham direito a habitação. Ali viveu até aos 5 anos, quando a família se mudou para a localidade de Fão, a uns 5 km, onde iniciou o seu percurso escolar.

Seguiu-se o Colégio Infante Sagres, em Esposende, e o então Liceu Nacional da Póvoa de Varzim, atual Escola Secundária Eça de Queiroz. Tinha apenas 17 anos quando entrou para a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Conta que quando começou o curso já tinha definido que haveria de vir a ser pediatra, o que veio, de facto, a acontecer, com o título a ser-lhe concedido em 1988, no final do internato da especialidade.

Esse lapso de tempo explica-se pelo facto de, após obter a licenciatura em Medicina, em 1976, ter estado durante dois anos a fazer o chamado Serviço Médico à Periferia, tendo andado por Trás-os-Montes, em Montalegre e Murça. Entre 1989 e 1990, foi até Paris, trabalhando na sua tese de doutoramento, que viria a defender em 1993, no ano seguinte a obter a subespecialidade de Neonatologia.

“Eu gosto de qualquer área da Pediatria, mas foi a Neonatologia que sempre me fez sentir realizada”, confessa, tendo acabado por se tornar diretora do respetivo Serviço em 1996, cargo que desempenharia até 2020. Para que não haja dúvidas, estamos sempre a falar do São João, hospital universitário que passou a ser a sua “2.ª casa” durante o curso de Medicina e que nunca abandonou durante a sua carreira profissional.

“Foi ali que estive a minha vida toda, com exceção dos tempos do Serviço Médico à Periferia e do meu estágio em Paris”, reforça Hercília Guimarães, que ainda no início deste mês de outubro regressou à instituição para fazer as fotos que ilustram esta entrevista. “Quase parece que estiveram à espera que eu saísse para agora terem estas instalações espetaculares”, comenta, meio a brincar, olhando para a fachada da nova Ala Pediátrica.

Importa referir que a nossa entrevistada sempre se mostrou muito atraída pela carreira académica. Logo no 1.º ano como interna pediu ao diretor do então Serviço de Pediatria, Norberto Teixeira-Santos, que lhe permitisse começar a dar aulas, mas não teve sorte. “Ele disse-me logo que não podia ser. E foi muito claro:


‘Aqui isso só é possível a partir do 3.º ano do internato.’ Esperei e, nessa altura, lá fiz novamente o pedido, apresentei o requerimento e comecei a dar aulas”, recorda. Com o título de Agregação em Pediatria pela FMUP obtido em 1999, Hercília Guimarães foi vice-presidente do Conselho Pedagógico entre 2000 e 2006, e dirigiu o Departamento de Pediatra da FMUP entre 2012 e 2016.


Hercília Guimarães: “Eu gosto de qualquer área da Pediatria, mas foi a Neonatologia que sempre me fez sentir realizada”

A pediatra diz que se terá tornado sócia da SPP logo que começou o internato. Posteriormente, integrou a Sociedade Portuguesa de Neonatologia, na altura uma Secção da SPP, que seria formalmente reconhecida como Sociedade afiliada da SPP mais tarde, em 2015. Viria a ser sua vice-presidente (2001-2004) e logo a seguir presidente (2004-2007).

Também relativamente à Union of European Neonatal and Perinatal Societies (UENPS), sociedade científica fundada pelas sociedades portuguesa e italiana de Neonatologia, foi sua vice-presidente (2006-2008) e no mandato seguinte presidente (2008-2010).

De referir que colaborou na fundação da EFCNI (European Foundation for Care of the Newborn Infant), organização que integra as associações de pais de permaturos de vários países europeus, tendo feito parte da Direção entre 2006 e 2012. A esse respeito, realça “a importância do envolvimento dos pais nos cuidados prestados aos bebés nos serviços de Neonatologia”.

“Quando um filho não está bem toda a família fica doente”


Hercília Guimarães considera que “uma das razões que tornam a Pediatria atrativa para os jovens médicos é a possibilidade em se diferenciarem numa das várias subespecialidades disponíveis. Isto apesar de ser importante a figura do pediatra geral, por constituir uma mais-valia para a criança o ser vista por nós como um todo”.

A vencedora do Prémio Carreira 2025 da SPP vai mais longe ainda: “Uma coisa que fui sempre sentindo ao longo da minha vida profissional é que quando estamos a observar uma criança também temos à nossa frente os pais, mais ou menos emocionados, com maior ou menor preocupação, porque têm ali o seu bem mais precioso e, portanto, eles também estão doentes. Aliás, quando um filho não está bem toda a família fica doente!”

Confrontada com um comentário que se pode ler algures na internet, eventualmente de uma mãe, que agradece a Hercília Guimarães o “tão grande descanso emocional” que lhe proporcionou durante a consulta com o filho, a médica recorda um episódio que a deixou “sem palavras”:

“Uma mãe apareceu-me na consulta com uma série enorme de problemas apontados numa folha de papel, que eu fui desmistificando um a um, conversando com ela, o que a deixou atónita. E disse-me: ‘Parece impossível como toda a minha lista não faz agora sentido! Como é que conseguiu?’ É muito importante a atenção que se dá aos pais, ir respondendo a todas as suas dúvidas de uma maneira agradável, para que fiquem mais confiantes e emocionalmente tranquilos. Fundamentalmente, fazer com que se sintam apoiados.”

A médica admite que até concorda com quem afirma que ela tem facilidade em criar empatia com as crianças, tendo tido muitas provas disso mesmo ao longo da sua atividade como pediatra. Não resiste, aliás, a contar o episódio que envolveu um menino com 3 ou 4 anos, franzino, que conseguiu que a mãe o levasse de volta à consulta com Hercília Guimarães muito pouco tempo depois de com ela ter estado, com a queixa de não conseguir andar porque os pés lhe doíam muito:

“Eu sentei-o, examinei-o e perguntei-lhe: ‘Em que sítio é que te doem os pés.’ Achando que eu estaria, de certo modo, indecisa para descobrir o que ele tinha, sussurrou-me ao ouvido: ‘Olha, eu vou dizer-te a verdade. Não me doem pés nenhuns, eu queria era vir ver-te!’ Eu achei este episódio maravilhoso! Realmente, os miúdos são fora de série, mesmo espetaculares. São os melhores doentes que poderíamos desejar ter.”

“Fico muito grata por receber este Prémio, mas devo agradecer também às pessoas com quem trabalhei”

“Valorizo muito a atitude da Sociedade Portuguesa de Pediatria ao atribuir-me o Prémio Carreira, e devo dizer que fiquei mesmo muito contente. Penso que sempre trabalhei toda a vida com gosto e dedicação. Mas também tenho a certeza de haver muitos outros pediatras com mérito e uma carreira preenchida merecedores de idêntica distinção”, afirma Hercília Guimarães, acrescentando:


“Fico muito grata por receber este Prémio, mas devo agradecer também às pessoas com quem trabalhei, porque tive sempre a sorte de ter em meu redor profissionais e equipas espetaculares, que aceitavam os desafios e me apoiavam em termos de suporte científico e de trabalho.”

Vale a pena lembrar que o Prémio Carreira SPP é atribuído anualmente a um pediatra membro da Sociedade, “como reconhecimento pelo elevado mérito das suas atividades”. Os critérios para a proposta de candidatos por parte dos sócios incluem a existência de “um histórico de excelência na prática clínica, no ensino e formação, na investigação, ou em qualquer combinação das mesmas, na área da Pediatria”.


A entrevista completa pode ser lida no Jornal do 25.º Congresso Nacional de Pediatria.

Imprimir


Próximos eventos

Ver Agenda