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«A comorbilidade entre patologia psiquiátrica e dor crónica é muito elevada»

Desde outubro que a equipa do Centro Multidisciplinar de Dor Beatriz Craveiro Lopes (CMDBCL) integra uma psiquiatra que, apesar de estar apenas a tempo parcial, representa uma enorme mais-valia para os doentes que ali são acompanhados, representando a disponibilização de uma valência que a Direção do Centro já tinha identificado há bastante tempo como necessária.  

A ligação da psiquiatra Catarina Jesus ao Centro Multidisciplinar de Dor do Garcia de Orta, hospital que hoje em dia integra a ULS Almada-Seixal, iniciou-se há pouco mais de um ano, quando foi convidada para fazer duas apresentações na edição de 2023 do Congresso de Medicina da Dor.

Numa delas abordou a relação que existe entre a dor e a depressão e na outra debruçou-se sobre a dor nociplástica, um conceito recente que, como se sabe, caracteriza as situações em que o processamento da dor está alterado, sem evidência de lesão tecidular concreta ou potencial, nem de lesão do sistema somatossensorial.


Catarina Jesus

"2/3 dos doentes com dor apresentam ansiedade, depressão e/ou perturbações do sono”

O convite para colaborar com o CMDBCL de uma forma regular, assegurando a Consulta de Psiquiatria nas instalações de que o Centro dispõe no concelho de Almada, a uns 4 km de distância do HGO, surgiria a seguir. A resposta de Catarina Jesus foi positiva e em outubro já estava ao serviço dos utentes que mais necessitavam da sua intervenção.

Mas será que a existência de um especialista em Psiquiatra numa estrutura inteiramente dedicada à dor pode mesmo ser útil? “Eu diria que sim, tendo em conta uma compreensão biopsicossocial da dor. Ou seja, ela é multifatorial e efetivamente nós sabemos que a comorbilidade entre patologia psiquiátrica e dor crónica é muito elevada, com estudos realizados a indicarem que 2/3 dos doentes com dor apresentam ansiedade, depressão e/ou perturbações do sono.”

“E também está evidenciado que, por exemplo, no caso da depressão, a presença desta patologia aumenta o risco de persistência da dor e da sua intensidade, e que, por outro lado, a existência de dor crónica também pode agravar o prognóstico de depressão. Ou seja, na realidade, verifica-se haver uma relação bidirecional, sendo certo que podemos ajudar um doente com dor a melhorar o controlo da mesma se também tratarmos da sua saúde mental”, afirma Catarina Jesus.

Referindo que os doentes com dor crónica, comparativamente com a população em geral, correm um risco cinco vezes superior de vir a sofrer de depressão, a psiquiatra salienta que a probabilidade de surgir um quadro de ansiedade ainda é maior.

Para além de que “se o doente se sentir mais ansioso pode aumentar a intensidade da dor”. Segundo a nossa interlocutora, há ainda outros aspetos a ter em conta, nomeadamente a circunstância de que “até 80% dos doentes com dor crónica têm disfunção sexual, com 40% deles a deixarem mesmo de ter vida sexual”.

Quanto às perturbações do sono, que “são muito prevalentes”, a relação bidirecional também se observa aqui: a dor interfere com o sono e o dormir mal acaba por agravar a dor, para além de aumentar a vulnerabilidade ao desenvolvimento de outras patologias do foro psiquiátrico.


A intervenção da Psiquiatria “não é por a dor ser inventada”

Comparativamente com a população habitualmente atendida pela Psiquiatria geral, os doentes observados por Catarina Jesus no Centro Multidisciplinar de Dor Beatriz Craveiro Lopes têm, em média, uma idade superior, mas o número de utentes do sexo feminino é igualmente superior, confirmando que também há jovens com dor crónica que necessitam de apoio psiquiátrico.

“Quando uma pessoa vive com dor desde muito cedo, a situação não é muito diferente da verificada relativamente a outras condições crónicas, como a diabetes", afirma Catarina Jesus.

Com base na sua experiência, a médica adianta que "a patologia prevalente será afetiva, ou seja, estamos a falar de perturbações depressivas e de ansiedade, mas é algo complexa a necessidade de intervenção. Esta é mais desafiante pela constância da patologia desde uma idade precoce. Contribui para a dificuldade em aceitar as limitações e a intervenção, pois nunca se teve o que estes doentes consideram uma ‘vida normal’, que identificam quando se comparam com os seus pares."


Catarina Jesus e Alexandra Reis, diretora do CMDBCL

De qualquer forma, “a Psiquiatria tem sido cada vez mais encarada como uma área médica necessária e a própria pandemia de covid-19 contribuiu muito para isso, alertando para a importância de as pessoas cuidarem da sua saúde mental, o que tem feito diminuir o estigma em relação a esta área da medicina. Isso resulta da partilha de informação mas também porque as pessoas já falam mais sobre estas doenças, até por haver figuras públicas a fazê-lo na primeira pessoa”.

A especialista alerta, contudo, para o facto de ser “muito importante, nesta área da dor, que o utente a quem é sugerido que tenha um acompanhamento psiquiátrico não conclua, incorretamente, que o querem encaminhar para a Consulta de Psiquiatria por a manifestação de dor ser inventada, por não ser real".

E acrescenta: "Ele deve ser esclarecido que se trata de uma intervenção complementar e que a deve encarar como uma melhoria dos cuidados que lhe estão a ser prestados. Portanto, nós, enquanto prestadores de cuidados de saúde aos utentes, temos que ser cuidadosos com a forma como comunicamos."


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