Um novo modelo organizacional de proximidade? Unidade Integrada de Cuidados na Comunidade (UICC)


Silvana Ferreira Marques

Enfermeira gestora, ULS da Região de Aveiro



A criação das Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC) constituiu um marco decisivo na Reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), iniciada em 2005, em Portugal. Inseridas num modelo orientado para a proximidade, a multidisciplinaridade e a intervenção comunitária, as UCC foram formalmente regulamentadas pelo Despacho n.º 10143/2009, assumindo a missão de prestar cuidados de saúde e apoio social centrados na família, na comunidade e nos grupos vulneráveis.

A reforma dos CSP, estruturada pelo Decreto-Lei n.º 28/2008, estabeleceu os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) e abriu caminho a novas unidades funcionais, incluindo as UCC, reforçando a autonomia, a eficiência e a intervenção comunitária.

O despacho de 2009 definiu funções essenciais das UCC: cuidados domiciliários, promoção da saúde, vigilância de grupos vulneráveis, articulação com entidades sociais, prevenção da doença e participação na formação de profissionais. Introduziu ainda elementos estruturantes como a autonomia organizativa, a carta de compromisso anual, as equipas multiprofissionais e a avaliação por indicadores.

Entre 2009 e 2025, o desenvolvimento das UCC foi gradual e marcado por assimetrias territoriais, dependência da iniciativa local, escassez de recursos humanos e capacidade organizacional variável entre ACES e, mais tarde, ULS. Exemplos como a UCC Anadia, criada em 2013, ilustram esta diversidade.

As UCC consolidaram-se como unidades essenciais em áreas como a saúde escolar, a saúde mental comunitária, a intervenção precoce, o apoio a famílias vulneráveis, os cuidados continuados integrados (ECCI), a gestão da doença crónica e a reabilitação.

A contratualização tornou-se instrumento-chave de governação, reforçado com o BI-CSP, permitindo definir indicadores específicos, monitorizar desempenho, articular com outras unidades (USF, UCSP, USP) e potenciar o trabalho com autarquias e parceiros sociais.

A literatura científica recente confirma o papel das UCC  como pilar do modelo comunitário, integrando promoção, prevenção, vigilância, reabilitação e intervenção social. A transição para as ULS reforça esta lógica de integração, alinhada com tendências internacionais, promovendo cuidados centrados no cidadão, reduzindo contactos evitáveis e valorizando a prevenção, o diagnóstico precoce e os cuidados domiciliários.


Silvana Ferreira Marques

Persistem, contudo, desafios estruturais. As desigualdades territoriais permanecem evidentes ao nível dos recursos humanos, da capacidade de resposta domiciliária e da articulação local. A Associação das Unidades de Cuidados na Comunidade defende a elevação do Despacho a Decreto-Lei, garantindo estabilidade jurídica e uniformidade nacional. A integração com a RNCCI tem evoluído, especialmente através das ECCI, reforçadas pela Portaria n.º 156/2025.

A escassez de profissionais (médicos, enfermeiros especialistas, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas e assistentes técnicos) limita a capacidade assistencial e exige revisão urgente das dotações mínimas. No contexto das ULS, importa ainda repensar a manutenção de microequipas que reforçam as desigualdades estruturais e de acesso destas equipas.

Face ao envelhecimento populacional, a dependência funcional crescente e a pressão hospitalar, as UCC assumem-se como estruturas fundamentais para garantir cuidados de proximidade, equidade, integração entre saúde e apoio social e sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.

O futuro dependerá da consolidação jurídica, do reforço da contratualização inteligente, do investimento em equipas especializadas, da integração de dados e de tecnologia, e do fortalecimento das redes locais com autarquias e instituições da comunidade. Países como os Países Baixos, a Suécia e a Dinamarca constituem referências internacionais em cuidados domiciliários, prevenção, equidade e resultados em saúde, oferecendo modelos inspiradores para Portugal.

Neste contexto, propõe-se a evolução para Unidades Integradas de Cuidados na Comunidade (UICC) -- um novo modelo organizacional de proximidade, com equipas multidisciplinares completas, rácios mínimos, autonomia e forte articulação com a educação, o setor social e a governação local.

As UICC enfatizam a promoção da saúde, a prevenção da doença, a literacia, a saúde mental, o financiamento baseado em resultados, a avaliação transparente e o uso intensivo de tecnologias (registo clínico interoperável, telemonitorização, dashboards populacionais). Este modelo reforça a capacidade das ULS para reduzir urgências evitáveis, melhorar indicadores populacionais, integrar respostas sociais e educativas e potenciar o capital comunitário.

Pilares e ações prioritárias

 

1) Modelo de cuidados -- equipa multidisciplinar com  rácios mínimos por regiões;

Ação chave: estruturar com equipas completas multiprofissionais.


2) Integração da saúde com a Educação, serviços social e governação local;

Ação chave: instrumentos legais/contratuais para integração -- mapear responsabilidades, recursos e fluxos de financiamento entre Saúde, Educação e Serviços Sociais e Autarquias.


3) Capital humano -- formação contínua e transversal das equipas a nível nacional;

Ação chave: programas com impacto em equidade, na eficiência, no acesso e na qualidade. 


4) Financiamento, incentivos e avaliação.

Ação chave: financiamento com base na cobertura, incentivos pelo desempenho, governação baseada em resultados.


5) Digital health & dados

Ação chave: registo clínico interoperável (padrões nacionais), telemonitorização para doentes crónicos, triagem digital para priorização de visitas, dashboards para gestores locais.

 

A história das UCC revela uma evolução significativa mas marcada por limitações estruturais persistentes. Apesar dos 16 anos decorridos desde o despacho fundador, a ausência de enquadramento jurídico mais robusto, a insuficiência de dotações e a falta de financiamento adequado continuam a condicionar o seu impacto. Ainda assim, as UCC afirmaram-se como pilares da saúde comunitária, promovendo a proximidade, a continuidade e a equidade.

O avanço para as UICC poderá representar a consolidação definitiva de um modelo integrado, territorial e sustentável para o futuro dos cuidados de proximidade em Portugal, envolvendo de forma clara as ULS e as autarquias na responsabilidade pela saúde das populações.


Nota: Este artigo de opinião foi escrito para a edição de dezembro 2025 do Jornal Médico.

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