KRKA

Opinião

«Trabalhadores não clínicos do SNS: invisíveis e (in)dispensáveis»


Xavier Barreto

Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH)



Nos hospitais portugueses, todos os dias se realizam atos extraordinários. Neurocirurgiões removem tumores cerebrais altamente complexos, devolvendo à vida doentes que pareciam destinados à fatalidade.

Oncologistas identificam variações genómicas específicas de cada doente e testam novos fármacos desenhados de forma individualizada para cada caso. Hematologistas extraem células do sistema imunitário de cada doente, para depois as reintroduzir nos seus organismos, já reprogramadas para identificar e matar células tumorais. Cirurgiões pediátricos identificam e corrigem malformações fetais, mesmo antes de o bebé nascer, restituindo paz ao coração dos seus pais.

São atos incríveis que nos emocionam pelo impacto transformador que têm na vida dos nossos doentes. Atos que estão nas mãos dos nossos profissionais de saúde, com os quais é um privilégio trabalhar.

A grandeza destes atos, a qualidade destes profissionais, não pode, no entanto, relativizar ou desmerecer a importância de todos aqueles que trabalham ao seu lado, para tornar estes atos possíveis no SNS.

Salas cirúrgicas, áreas de tratamentos, unidades de internamento são áreas altamente complexas, que mobilizam múltiplos recursos e que não funcionam sem o contributo de múltiplos profissionais não clínicos.

São os materiais e equipamentos, que têm de ser comprados em processos complexos e extremamente exigentes. Os recrutamentos e processos de avaliação de desempenho que têm de ser levados a cabo para manter as equipas em funcionamento.

Os circuitos logísticos, que são os verdadeiros “vasos sanguíneos” dos nossos hospitais e permitem o abastecimento de todas as áreas com os produtos necessários ao que lá se faz. A engenharia, que permite que o hospital tenha instalações e condições ótimas de energia, gases medicinais e climatização, indispensáveis ao seu funcionamento.

Os serviços de informática, que garantem o funcionamento dos sistemas de informação, sem os quais nenhum ato é realizado. A limpeza e alimentação, que garantem a assepsia e alimentam (literalmente) estruturas com milhares de doentes e profissionais.

A gestão hospitalar, que garante que todas estas áreas funcionam de forma integrada, respondendo da forma mais eficaz e eficiente possível às necessidades dos nossos cidadãos.

Todos estes serviços são garantidos por milhares de trabalhadores não clínicos do SNS. Sem estes trabalhadores (administradores hospitalares, informáticos, engenheiros, técnicos superiores, assistentes técnicos, entre tantos outros) os hospitais não funcionam. Sem eles, os hospitais não funcionariam “apenas” pior ou menos bem. Na verdade, não funcionariam de todo.


Xavier Barreto

No entanto, continuamos a descurar estes profissionais, como se fossem dispensáveis ou pouco relevantes. Discutem-se novos sistemas de incentivos sem que sejam considerados. Continuam com carreiras por rever, ignorando o seu empenho e dedicação ao SNS. São a última prioridade dos governos porque, por serem menos propensos a greves e protestos, passam a ideia de que se contentam com pouco (talvez seja tempo de mudar isso).

Geralmente não recebem qualquer parte da produção adicional, ainda que esta não se possa realizar sem o seu contributo. Foram ignorados nos prémios COVID, mesmo que muitos tenham passado semanas sem ver as suas famílias, trabalhando de sol a sol.

Desempenhar estas funções nos hospitais não tem a mesma magia que a prestação de cuidados. Não fazem séries de TV sobre o nosso trabalho: as nossas funções não são suficientemente sedutoras para prender a atenção dos telespetadores. Não temos o bisturi na mão, não fazemos o “milagre”, removemos tumor ou acertamos no diagnóstico. Mas nada disso seria possível sem o nosso contributo.

Se o Governo não acreditar na importância deste contributo, em breve serão estes profissionais que desacreditarão da importância de manterem o seu empenho e dedicação. A aposta na qualificação destas áreas será também uma aposta na eficiência e eficácia do SNS. Será, acima de tudo, uma aposta na criação de respostas e estruturas mais capazes de responder aos nossos doentes.

Permitindo que os profissionais de saúde continuem a realizar os atos extraordinários que, com todas as suas insuficiências, continuam a fazer deste um dos melhores Serviços Nacionais de Saúde do mundo.



O artigo pode ser lido na última edição do jornal Hospital Público.

Imprimir


Próximos eventos

Ver Agenda