Opinião
«Reforma dos CSP: entre a consolidação e a necessidade de uma nova missão»
Gonçalo Melo
Médico de família. Vogal da Direção da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (USF-AN)
André Biscaia
Médico de família. Presidente da Direção da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (USF-AN)
Coautores
António Pereira, Ana Maria Alves, Deolinda Chaves Beça, Virgínia Matos, Bruno Morrão e Fabrizio Cossutta.
O estudo “O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal 2024/25”, censo promovido pela USF-AN e respondido por 538 coordenadores de USF (77,6% do total), revela um sistema mais consolidado, mas ainda marcado por fragilidades estruturais e desafios de integração no novo modelo das Unidades Locais de Saúde (ULS).
Mais USF, mais cobertura, mais desafios
Portugal tem hoje 703 USF a funcionar, com 8 milhões de utentes e mais de 14.600 profissionais. É o número mais elevado de sempre e reflete o impacto da eliminação das quotas de passagem para o modelo B, concretizada em 2024. Apesar do crescimento, o estudo alerta que o processo ocorreu de forma desigual, sem o tempo de maturação e formação necessários. A consolidação organizacional e o apoio técnico ainda não acompanharam o ritmo da expansão.
Satisfação em alta, mas persistem fragilidades
A satisfação global das equipas aumentou -- 80,6% estão satisfeitas ou muito satisfeitas com a sua própria USF -- e aumentou a satisfação com a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, com redução dos “muito insatisfeitos”, um grupo importante para o clima geral. No entanto, apenas um terço considera o seu equipamento clínico suficiente e 44% classificam as instalações como desadequadas. Quase todas as unidades relatam falhas informáticas frequentes e lentidão na resolução de problemas. A interoperabilidade entre sistemas continua incompleta, comprometendo a integração de cuidados. 90% referem faltas de material básico, 30% delas mais de 10 vezes no ano, com atrasos de reposição superior a dois dias em 77% dos casos.
Gonçalo Melo e André Biscaia
ULS: integração ou centralização?
A generalização das ULS trouxe oportunidades, mas também riscos. Um terço das USF afirma que a sua ULS não possui manual de articulação de cuidados e menos de 40% reconhecem ganhos concretos na cooperação entre níveis assistenciais. Ainda assim, os diretores clínicos para os CSP e os seus adjuntos são amplamente valorizados -- “quanto mais próxima é a liderança maior é a satisfação”, conclui o relatório.
Profissionais no centro das preocupações
A carência de recursos humanos mantém-se crítica: 58% das USF tiveram ausências prolongadas sem substituição. Há consenso quase total sobre a necessidade de criar uma carreira de secretariado clínico (93%), abrir vagas para enfermeiros especialistas e melhorar a progressão das carreiras médicas e de enfermagem. A conciliação entre vida profissional e pessoal e a simplificação administrativa surgem como prioridades urgentes.
Contratualização e autonomia
Apesar do recorde de USF (88%) que discutiram o plano de ação com a ULS, quase metade das equipas sente limitações à sua autonomia. Persistem atrasos no pagamento de incentivos institucionais e um défice de transparência na contratualização. O estudo recomenda contratualização plurianual, maior autonomia financeira e gestão orientada para resultados.
Um futuro menos burocrático e mais próximo
Os coordenadores das USF definem com clareza o rumo desejado: menos burocracia (99%), mais digitalização (77%), melhor conciliação familiar (99,6%), flexibilidade de horários (97%) e maior envolvimento dos utentes (73%). Apenas 14% apoiam a criação de USF de gestão privada (modelo C), confirmando a preferência por um SNS público, eficiente e com autonomia local.
Conclusão
O estudo da USF-AN mostra que as USF são uma das reformas mais bem-sucedidas do setor público português. Contudo, os autores alertam que o sucesso só será sustentável se houver liderança próxima, investimento consistente e políticas baseadas em evidência. Duas décadas depois, Portugal precisa de uma nova Missão para os Cuidados de Saúde Primários -- capaz de consolidar o que foi conquistado, devolver autonomia às equipas e recentrar o SNS naquilo que sempre o distinguiu: a proximidade e a confiança entre profissionais e cidadãos.
Fonte: Estudo “O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal 2024/25”, USF-AN, outubro de 2025.

Nota: Este artigo de opinião foi escrito para a edição de dezembro 2025 do Jornal Médico.


