Psiquiatria na ULS Estuário do Tejo: «Em pouco tempo conseguimos reconstruir positivamente o Serviço»
Quando Gustavo Jesus assumiu a direção do Serviço de Psiquiatria do então designado Hospital de Vila Franca de Xira, em dezembro de 2023, deparou-se com um quadro de profissionais muito escasso, do qual faziam parte apenas dois psiquiatras. “Durante os últimos dois anos, assistiu-se a uma debandada de médicos do SNS, e este Serviço não foi exceção”, refere no decorrer desta reportagem.
Gustavo Jesus
Com a aposentação da anterior diretora, Maria João Carnot, no final de julho de 2023, o Serviço viveu “uma fase de transição, impasse e reorganização”, o que terá contribuído para esse cenário. “Quando aqui cheguei, a atividade estava nos seus mínimos. Felizmente, em pouco tempo, conseguimos reconstruir positivamente o Serviço, reestruturá-lo devidamente e fazê-lo crescer”, afirma, com orgulho, notando como tal se refletiu no “aumento da capacidade de resposta aos doentes”.
Apenas três meses após a sua entrada, o Serviço conseguiu captar cinco psiquiatras, tendo vindo a ser sucessivamente admitidos mais especialistas, tanto a contrato como em regime de prestação de serviços.
O ambulatório foi uma das prioridades e, com a redistribuição das agendas médicas, “foi possível eliminar a lista de espera e passar a dar uma resposta atempada aos pedidos de consulta”. Em virtude desse feito, Gustavo Jesus avançou com a constituição de consultas de subespecialidade, concretamente de Neuropsiquiatria, Neurodesenvolvimento do Adulto, Psiquiatria de Ligação, Obesidade e Psiquiatria Perinatal.
“Estas consultas temáticas enriquecem o Serviço, não só por melhorarem a qualidade do trabalho prestado junto dos doentes como também por aumentar a motivação e a gratificação profissional dos médicos ao estarem a realizar projetos diferenciados do seu interesse”, comenta.
Na mesma senda, o diretor decidiu delegar a coordenação das áreas funcionais nos colegas, por entender que “cada pessoa tem um setting de competências diferente e é fundamental aproveitá-las para melhorar os cuidados de saúde prestados”.
“Como frisa, “é importante que os médicos possam colocar em prática as áreas nas quais se diferenciaram, seja através da realização de uma consulta temática ou da coordenação de uma área especializada”.
Atualmente, tem vindo a ser estabelecida uma “articulação mais estreita com os CSP, uma vez que representam a primeira linha de tratamento das doenças psiquiátricas mais comuns”. O intuito é poder “promover formações dirigidas aos colegas dos CSP e reuniões presenciais ou à distância de consultadoria para discussão de casos, a fim de moldar a referenciação”.
Nesse sentido, a 27 de novembro de 2024, realizou-se, em parceria com o Núcleo de Internos do Estuário do Tejo, o primeiro Curso Breve de Perturbações Mentais para Medicina Geral Familiar, dirigido aos médicos dos CSP da ULS do Estuário do Tejo.
A implementação do programa de visitação domiciliária e a reativação do Hospital de Dia Assim que forem captados os recursos de enfermagem necessários, Gustavo Jesus gostaria de avançar com a execução de “dois projetos fundamentais”, um dos quais “a implementação do programa de visitação domiciliária, com o objetivo de reduzir a pressão sobre o Internamento, em casos que possam ser abordados no domicílio”.
Efetivamente, “a grande demanda tem levado a que o Internamento esteja permanentemente com uma lotação de 100% e, se tivermos um programa de visitas domiciliárias em curso, poderemos, em certos casos, oferecer altas um pouco mais breves e internamentos mais selecionados”.
Esclarece, assim, que, perante a existência dessa alternativa, será viável, “ao identificar um doente em fase de descompensação aguda da sua doença mental em consulta ou Serviço de Urgência, optar por geri-lo em casa, quando a situação não exigir internamento”. Para este projeto serão alocados grupos constituídos por médico, enfermeiro e assistente social.
O nosso entrevistado comenta como antes da sua chegada a taxa de ocupação nunca excedia os 90%, atribuindo a justificação ao facto de a resposta do Serviço estar organizada de forma diferente: “Quando temos mais médicos a fazer consulta ou urgência, abrimos as portas e obviamente que a referenciação aumenta, tal como a necessidade de internamento.”
Gustavo Jesus adianta que este projeto da visitação domiciliária integrar-se-á num programa mais global de psiquiatria comunitária, que prevê a existência de equipas comunitárias de saúde mental. “Mesmo que numa fase inicial não seja possível organizar as equipas comunitárias na sua totalidade, poderão ser iniciados cuidados comunitários, nomeadamente através da realização de consultas de Psiquiatria em certas unidades dos CSP onde se verifiquem maiores necessidades e do desenvolvimento de um trabalho de consultadoria mais próximo”, ressalva.
Também a reativação do Hospital de Dia, que fechou portas com o surgimento da pandemia de covid-19, é um projeto para breve, que estava planeado acontecer em janeiro de 2025.
Este Hospital de Dia terá duas vertentes: o internamento parcial, que está previsto para “os doentes que não reúnem os critérios para internamento completo, mas estão numa fase de descompensação da sua doença ou a iniciar um processo reabilitativo de treino de atividades de vida diária ou de regresso ao mercado de trabalho, por exemplo”; e a clínica de clozapina e lítio, que permite a indução e monitorização apertada destes fármacos em ambulatório.
“Neste momento, estamos ainda numa fase de grande ebulição, em virtude do aumento da resposta de internamento, mas, com as visitas domiciliárias, o hospital de dia e o reforço da valência comunitária, esperamos que a taxa de ocupação possa estabilizar e eventualmente reduzir”, comenta.
Com grande interesse em “diferenciar ainda mais os cuidados prestados”, o psiquiatra adianta que, neste momento, “os doentes têm acesso à generalidade dos tratamentos em psiquiatria e saúde mental, incluindo a eletroconvulsivoterapia, que tem sido realizada ora no hospital, ora em parceria com o setor social”.
Gustavo Jesus observa que, “se durante muitos anos a Psiquiatria foi colocada de parte, com alguns serviços a localizarem-se em hospitais psiquiátricos e outros em edifícios ou locais mais separados”, esse cenário mudou. “Aqui, não só estamos integrados no edifício principal e nos cuidados completos como estabelecemos uma forte interação com as outras especialidades médicas”, afirma.
Esse contacto é mantido porque, “na realidade, a saúde mental faz parte da saúde global, pelo que, da mesma forma em que o risco de doença médica não psiquiátrica aumenta perante um quadro de doença mental, todas as doenças médicas podem desencadear uma doença mental”.
No sentido de aumentar essa articulação, o Serviço tem dinamizado sessões conjuntas com as especialidades, sendo que uma das primeiras foi com o Serviço de Nefrologia.
“Nós apresentámos um tema pedido pelos colegas e eles prepararam um solicitado por nós”, especifica, acrescentando que esse tipo de contacto “gera ligações muito mais próximas e uma melhor facilidade de articulação clínica”. O nosso entrevistado não tem dúvidas quanto ao impacto positivo que tal representa, uma vez que “médicos mais motivados, atualizados e articulados vão obviamente prestar melhores cuidados aos doentes”.
Maria Vaz Velho e Carolina Oom integram o grupo de oito internos do Serviço
Gustavo Jesus avança que, ao longo deste ano, a equipa tem trabalhado também no sentido de aumentar a literacia em saúde mental da população em geral. É com esse objetivo em vista que estão a desenvolver um conjunto de materiais educativos sobre medicamentos, doenças e cuidados de saúde psiquiátricos, que serão disponibilizados nas plataformas da ULS.
Nesse seguimento, ainda este ano deverá arrancar um projeto de investigação, sob a direção de um dos internos, que irá debruçar-se sobre o impacto desses materiais na literacia dos doentes. Certo da importância deste tipo de trabalho, Gustavo Jesus afirma que “só aumentando a informação é que conseguiremos diminuir o estigma”.
Para breve, deverá avançar ainda a obra de melhoramento do pátio interior, a que os doentes internados podem aceder entre as 8h e as 23h. “Queremos transformar o atual espaço árido num lugar agradável, com uma zona de mesas e cadeiras, e uma área de horta, para promover atividades ocupacionais com jardinagem”, refere.
O diretor do Serviço orgulha-se do incentivo de toda a equipa na procura incessante de ideias, não deixando de reconhecer a importância da “total abertura da do Conselho de Administração para a sua execução”.
Ciente da “obstaculização à inovação que muitas vezes se associa ao SNS”, nota que o espírito que se vive na ULS do Estuário do Tejo é precisamente o contrário: “Temos tido grande abertura à implementação de todos os projetos e de todas as ações que visem enriquecer o trabalho clínico.”
A reportagem completa pode ser lida na edição de fevereiro do Jornal Médico.