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Intervenção precoce da Medicina Intensiva: «Temos evitado muitos internamentos»

"Medicina Intensiva é tratar o doente como um todo, antecipando o que vai ser o dia seguinte", afirma João Miguel Ribeiro, diretor do Serviço de Medicina Intensiva do Hospital de Santa Maria. Uma intervenção que inclui, aliás, "a implementação de um processo assistencial de natureza mais preventiva", asssegura o médico.

Esta proatividade e visão holística dos profissionais da Medicina Intensiva tem passado despercebida entre tantas abordagens sobre a covid-19 no último trimestre, mas tem sido uma realidade, nomeadamente, nesta unidade do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHLN), e tem contribuido para a obtenção de melhores resultados e, em última análise, para salvar vidas.

"Evitar a transição da ameaça para o estado declarado de falência de órgão"

Em entrevista ao Hospital Público, João Miguel Ribeiro destaca precisamente aquilo que considera ser uma perceção muito redutora e, como tal, errada do que é e deve ser a Medicina Intensiva:

“Numa visão simplista, falando-se muito de ventiladores, dá a ideia de que a Medicina Intensiva é uma área funcional do hospital onde os doentes ficam deitados, em coma, ligados a um ventilador, e não se faz mais nada. Mas Medicina Intensiva não é isso!”


João Miguel Ribeiro: “Medicina Intensiva como área disciplinar não tem nada a ver com Cuidados Intensivos"

O responsável pela Medicina Intensiva de Santa Maria assume, assim, sem qualquer hesitação, a responsabilidade por uma visão integrada do doente:  “Nós temos a obrigação de contribuir para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da doença crítica, entendendo-se como tal um estado de alteração da condição de saúde em que existem determinados aspetos que predominam".

E que aspetos são esses? "São os que resultam da disrupção da fisiologia humana, com órgãos e sistemas ameaçados. Podem não estar declaradamente em falência, mas estão ameaçados", esclarece o médico.

E acrescenta: "Se nós conseguirmos intervir numa fase precoce, podemos evitar a transição da ameaça para o estado declarado de falência de órgão."


João Miguel Ribeiro com José Alexandre Abrantes, enfermeiro gestor

"O ventilador, por si só, não cura nada"

A Medicina Intensiva tem ao seu dispor um conjunto de recursos tecnológicos que permitem substituir, transitoriamente, um órgão que esteja em falência. E um órgão vital nessa situação, “por definição, conduz inexoravelmente à morte se não for alvo de uma intervenção”. Veja-se o que uma insuficiência respiratória grave pode originar, se um ventilador não ajudar a que o oxigénio chegue às células.



Mas essa é apenas, frisa João Miguel Ribeiro, a “componente muito operacional” da Medicina Intensiva de substituir órgãos e sistemas, até porque “o ventilador, por si só, não trata nada, não cura nada”. E destaca “a complexidade orgânica que é preciso ter em consideração quando se faz Medicina Intensiva”:

“Estes doentes têm um maior risco de evoluir para estados de desnutrição graves e perdem força muscular, o que pode comprometer a reabilitação no período posterior à fase mais aguda da doença crítica. A sua fragilidade origina complicações adicionais, um maior risco de contraírem infeções, de sofrerem tromboses venosas e hemorragias. São doentes muito mais sujeitos a processos de desconforto, de dor, de perceção de despersonalização, etc., o que exige um conjunto de modelos de atuação que nós temos que garantir.”


Parte da equipa de enfermagem da UCIP 3

Implementação de processos de "resposta assistencial que previnem a doença crítica”

“Com cada vez mais doentes acompanhados em ambulatório, nós temos hoje internada nos hospitais uma população com doença aguda que compromete mais a sua fisiologia. Isso, naturalmente, obriga a que tenham uma capacidade de dar segurança a estes doentes completamente diferente da que existia no modelo hospitalar dos anos 60, 70, 80... Nós ainda temos uma orgânica hospitalar muito dependente da herança desses tempos. Ora, isso tem que ser revisto”, considera João Miguel Ribeiro.

O responsável desenvolve a sua ideia: "Quando eu digo que a Medicina Intensiva tem um papel crucial é porque temos a obrigação de saber – e isso faz parte daquilo que é o exercício da nossa área disciplinar – que doentes podem, com uma intervenção precoce, evitar transitar daquela fase inicial em que os órgãos e sistemas estão ameaçados, mas ainda não entraram em falência."



Neste sentido, explica que há um conjunto de intervenções que, "se forem desencadeadas, efetivadas e promovidas nesta altura, permitem-nos evitar que a condição do doente progrida para um estado de falência declarada dos órgãos. Se conseguirmos fazer isso, muitos doentes já não precisarão de ser internados em Medicina Intensiva ou sê-lo-ão apenas durante um, dois ou três dias. É completamente diferente.”

De acordo com o médico, “é obrigação da Medicina Intensiva promover, desenvolver e implementar no hospital processos organizados de resposta assistencial que previnam a doença crítica". E isso é feito em Santa Maria. João Miguel Ribeiro tem tido reuniões regulares com os responsáveis da enfermaria onde estão doentes com infeção por coronavírus relativamente estáveis, ao cuidado da Medicina Interna.


“Procuramos assegurar que esse processo assistencial de natureza mais preventiva, ou pelo menos de sinalização precoce de doença mais grave, ocorra de uma forma que responda às necessidades dos doentes e que permita uma intervenção o mais precoce possível”, diz.


"De facto, por vezes a doença evolui de forma muito rápida"

Por aquilo que se tem visto nos casos que têm sido atendidos no Hospital de Santa Maria, há um padrão semelhante, que se reproduz de doente para doente. Numa fase inicial (5 a 7 dias), apresentam algumas manifestações da infeção: febre, dor de garganta, tosse, dores musculares, prostração, astenia... Num segundo período (também habitualmente de 5 a 7 dias), alguns doentes começam a desenvolver sensação de dispneia, falta de ar, hipoxemia...




“Habitualmente, numa primeira avaliação hospitalar, percebe-se que há dificuldade de oxigenação sanguínea e  observam-se alterações na radiografia ao tórax que traduzem pneumonia. Alguns doentes ficam neste patamar, regra geral, internados na Medicina Interna”, refere João Miguel Ribeiro,  acrescentando haver depois “uma forma de expressão da doença que, de facto, evolui de forma muito rápida”: 


“A pessoa tem a perceção de falta de ar, dá entrada na Urgência e, às vezes não em muito mais do que 48 horas, evolui para uma situação tão grave que obriga ao internamento na Medicina Intensiva.”

Médicos com uma capacidade de decisão e de intervenção extraordinária


João Miguel Ribeiro teve o primeiro contacto com o Serviço de Medicina Intensiva em 1997, quando o CHU Lisboa Norte ainda não tinha sido criado e o próprio Serviço nem sequer o era. A ligação à então denominada Área Funcional de Cuidados Intensivos manteve-a durante a sua formação em Medicina Interna, acabando por integrar o mapa de pessoal do Serviço – em rezime de dedicação total – escassos meses depois de aquele ter sido formalmente criado, em 2002.

Assumiu o cargo de diretor na primavera de 2018, mas já há muitos anos que tinha obtido a subespecialidade de Medicina Intensiva e, mais recentemente, a própria especialidade, entretanto criada, em 2015. Conhecia bem a equipa e a equipa conhecia-o.

Adora o que faz e isso percebe-se ao fim de cinco minutos de conversa. Aborrece-o bastante que se considere que Medicina Intensiva seja o mesmo que Cuidados Intensivos e sente-se particularmente incomodado com o facto (talvez se possa dizer assim) de o seu Serviço não estar à altura do hospital que serve, ou, melhor dizendo, “dos doentes e dos cidadãos em geral que o CHULN serve.

“Este Serviço de Medicina Intensiva tem uma dimensão em termos de número de profissionais e de estrutura objetivável que não corresponde às necessidades de uma instituição como Santa Maria, que tem 1000 camas de internamento de agudos e uma responsabilidade em termos assistenciais própria de um hospital de fim de linha”, afirma.



“Com uma estrutura de 31 camas, o que é manifestamente insuficiente para um hospital diferenciado como este, não acredito que no cenário posterior, quando se declarar a pandemia controlada, haja uma retração para aquilo que tem sido a nossa linha de base. Há que pensar naquilo que é fundamental – os equipamentos são um dos componentes, a arquitetura é outro, os recursos humanos são absolutamente cruciais”, salienta João Miguel Ribeiro, prosseguindo:

“Como é óbvio, este hospital não vai ter capacidade de multiplicar o número de médicos de Medicina Intensiva em poucos meses, mas vai ter que ser feito um esforço para identificar as necessidades efetivas. Não vamos poder continuar a trabalhar apenas com os 14 médicos que somos no Serviço.”



No seu entender, “são médicos com uma capacidade de decisão e de intervenção extraordinária, mas devo reconhecer, em rigor, que três deles estão numa fase inicial da sua formação em Medicina Intensiva, enquanto outros três aguardam apenas pelo reconhecimento formal do título”.


Relativamente aos internos, “são um recurso profissional de extraordinária valia, estão integrados nas nossas equipas e nos nossos processos funcionais, mas carecem de formação, não tendo uma bolsa de competências própria de um especialista. Para além disso, as ações formativas ocupam tempo e recursos, que acabam subtraídos à atividade assistencial”. Ainda são formados adicionalmente, por ano, mais de três dezenas de internos de outras especialidades que fazem osestágios de Medicina Intensiva”.



Faz iguamente questão de sublinhar que os cerca de 80 enfermeiros e 30 assistentes operacionais, a que se juntam três assistentes técnicos, têm sido também “manifestamente insuficientes” para dar resposta às necessidades do Serviço, obrigando a “aumentar o número de turnos”.

 “Não há heroísmo nenhum"


O atual diretor do Serviço de Medicina Intensiva de Santa Maria não é pessoa para se furtar a dizer o que pensa sobre as mais diversas matérias e, por isso, faz questão de deixar claro que rejeita “em absoluto a tipificação que atualmente se faz dos profissionais de saúde como heróis”.

  

E sublinha: “Não há heroísmo nenhum. Eu venho trabalhar com o mesmo espírito de missão com que vinha há um mês, ou há um ano!”



A reportagem completa ao Serviço de Medicina Intensiva do CHULN pode ser lida na edição de maio/junho do Hospital Público. Inclui um conjunto de entrevistas a vários profissionais, realizadas na semana anterior à Páscoa.

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