Opinião
Mapeamento de taquicardia ventricular: «Este é um inovador algoritmo para anotação dos sinais»
Gustavo Lima da Silva(1), João de Sousa(2) e Nuno Cortez Dias(3)
1-Assistente de cardiologia, Serviço de Cardiologia da ULS de SM 2-Coordenador da Unidade de Arritmologia do Serviço de Cardiologia da ULS de SM 3-Subcoordenador do Laboratório de eletrofisiologia do Serviço de Cardiologia da ULS de SM
O Hospital de Santa Maria é um centro nacional de referência no tratamento das arritmias ventriculares graves, recebendo regularmente doentes transferidos de todo o território nacional. Os avanços nesta área são fundamentais para aumentar as possibilidades de tratamento apropriado em doentes em crítico risco de vida.
As taquicardias ventriculares no contexto de cardiopatia estrutural originam-se por mecanismo de reentrada, dependente de istmos de condução lenta, habitualmente causados por áreas de fibrose miocárdica. Estes circuitos complexos podem ser mapeados, quer em ritmo sinusal ou pacing ventricular, através da identificação de potenciais tardios (que representam as zonas de condução mais lenta), ou durante taquicardia ventricular, identificando potenciais diastólicos (que representam condução no istmo).
O mapeamento eletroanatómico ventricular, modernamente, assenta na utilização de cateteres de alta densidade, que permitem a colheita de milhares de sinais elétricos, com uma elevada eficiência, que têm de ser anotados com precisão. Classicamente, a anotação dos eletrogramas era efetuada manualmente pelo operador. Havendo milhares de sinais para analisar, é criticamente necessário o recurso a algoritmos de anotação automática.
Até ao momento, não existiam algoritmos especificamente direcionados à anotação dos sinais ventriculares e a aplicação dos algoritmos auriculares no ventrículo tinha-se revelado inapropriada, atendendo à sua maior complexidade.
A Unidade de Arritmologia do Serviço de Cardiologia da ULS de Santa Maria estabeleceu, em 2017, uma parceria com a equipa de engenheiros da Unidade Research & Development da Biosense Webster (Telavive, Israel) com o objetivo de melhorar os instrumentos de mapeamento eletroanatómico utilizados na ablação de taquicardia ventricular.
Na sequência do trabalho de investigação por nós realizado, foi possível desenvolver um conceito original de análise dos sinais, que acabou por conduzir à génese deste projeto colaborativo.
Ao longo dos últimos 5 anos, foi comprovada a viabilidade da ideia, foram testados váriosmodelos de implementação e estes sucessivamente melhorados, num trabalho experimental de validação offline. O algoritmo final baseia-se na análise dos eletrogramas ventriculares unipolares, dando prioridade de anotação ao componente mais tardio, desde que o mesmo supere limiares mínimos de intensidade de dV/dT e seja temporalmente consistente em batimentos sucessivos.
Desenvolvemos ainda um inovador sistema de análise da velocidade de condução (Local Velocity Vectors – LVV), baseado na análise vetorial a nível regional, com o objetivo de ajudar à interpretação do mapa de substrato e ativação, tornando-se mais fácil e menos dependente da experiência do médico. Salienta-se que a coautoria da Unidade de Arritmologia do Hospital de Santa Maria ficou reconhecida no registo da patente.
Gustavo Lima da Silva, João de Sousa e Nuno Cortez Dias
Em 2022, foi concebido um protótipo, o qual foi, de forma pioneira, introduzido em teste no Hospital de Santa Maria no tratamento de doentes com taquicardia ventricular. Os ganhos em eficiência e acuidade na anotação automática superaram largamente as melhores expectativas.
A precisão atingida pelo sistema automático de anotação foi tão elevada que os mapas gerados a partir da anotação automática e instantânea pelo computador foram, na generalidade dos casos, indistinguíveis daqueles obtidos manualmente pelo ser humano, com a revisão manual dos milhares de pontos, o que requereu muitas horas.
A implementação deste novo sistema na prática quotidiana da Unidade de Arritmologia tornou os procedimentos de ablação de taquicardia ventricular muito mais rápidos e precisos. Hoje, a colheita, a revisão e a interpretação do mapa de substrato ventricular são completadas habitualmente em 15-20 minutos, quando há apenas 2 anos demoravam rotineiramente 1 a 2 horas.
Os ganhos de eficiência e rapidez no mapeamento nos procedimentos de ablação de taquicardia ventricular têm grande relevância clínica, na medida em que a duração da intervenção é um dos mais fortes preditores de complicações e intercorrências.
Em 2023, a Biosense Webster, empresa líder mundial no mapeamento electroanatómico em Eletrofisiologia, conferiu prioridade à disponibilização alargada aos laboratórios de Eletrofisiologia do algoritmo desenvolvido, o qual passou a ser designado Late Activation Mapping Algorithm (LAMA), passando a estar integrado na nova versão do sistema de mapeamento Carto-V8.
Em 14 de dezembro de 2023, o sistema de mapeamento Carto-V8 foi utilizado pela primeira vez na Unidade de Eletrofisiologia do Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar e Universitário Lisboa Norte - Hospital de Santa Maria, enquadrado no lançamento mundial desta nova versão do sistema de mapeamento. Foi empregue no tratamento de um doente com taquicardia ventricular complexa com origem epicárdica, uma situação de elevada gravidade e risco de vida.
O novo sistema de mapeamento confirmou as expectativas, revelando-se um instrumento valioso no tratamento das arritmias ventriculares graves, permitindo maior qualidade, eficiência e precisão na definição da estratégia terapêutica. A partir de agora, passará a ser progressivamente disponibilizado aos laboratórios de Eletrofisiologia de todo o mundo.
É com orgulho neste projeto, levado a bom termo, que acreditamos que o uso generalizado deste sistema de mapeamento vai tornar a ablação de taquicardia ventricular um tratamento mais standardizado e certamente mais eficaz para os nossos doentes.
O artigo pode ser lido na edição de janeiro/abril da revista Coração e Vasos.