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Opinião

Sinfonia Agridoce: Quando não há expectativa de cuidados de capacitação e empoderamento


Pedro Melo

Especialista em Enfermagem Comunitária. Professor auxiliar convidado do Instituto de Ciências da Saúde/Escola de Enfermagem da Universidade Católica Portuguesa



O título do Diagnóstico de Enfermagem deste mês é o nome de um clássico de uma banda dos anos 90, os The Verve.

Tal como no videoclipe se vê o vocalista a andar sem rumo e controlo, empurrando tudo e todos os que lhe aparecem à frente, também assim é o estado do que podemos vislumbrar face às apostas nos cuidados de saúde, do ponto de vista político, para o futuro.

Porquê, pergunta-se? Porque, na verdade, é um sabor agridoce o que temos da análise do(s) percurso(s) político(s) nos últimos 20 anos e também o sabor das expectativas para o futuro.

Agro porque o verdadeiro investimento na promoção da saúde ainda não aconteceu realmente. As políticas foram, tal como no videoclipe, avançando e atropelando os desafios lançados pelas cartas e recomendações resultantes das diferentes conferências de promoção de saúde, continuando a investir-se em Portugal, mormente em cuidados centrados na doença e tendo os hospitais e os profissionais médicos (da medicina) como epicentro das decisões.


Pedro Melo

É verdade que nos Cuidados de Saúde Primários foram acontecendo mudanças. A grande mudança, ocorrida em 2008, veio juntar às Unidades de Saúde Familiar (USF), criadas dois anos antes, as restantes unidades que viriam a constituir os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS).

Mas, desde então e no caminho até agora percorrido, os processos de contratualização, essencialmente focados na atividade assistencial (no caso das USF modelo B, orientados para um regime de incentivos que foi desgastando as equipas na procura de atingir os indicadores propostos), foram atropelando o foco no resultado e na clara orientação global para a capacitação dos cidadãos no controlo da sua saúde.

Dificilmente o número de vezes que se avalia uma pressão arterial nos utentes com hipertensão arterial traduz uma efetiva avaliação da efetividade na capacitação, por exemplo, para a Gestão do Regime Terapêutico.

As outras unidades (Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados [UCSP], Unidades de Cuidados na Comunidade [UCC], Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados [URAP] e Unidades de Saúde Pública [USP]) foram aparecendo no caminho destas políticas, sendo, como no videoclipe, atropeladas pelas orientações políticas, mas, milagrosamente (e aqui um sentido doce do sabor do caminho), mantendo uma resiliência e uma vontade de se manter firmes na sua missão.

As UCC foram demonstrando a sua identidade, na promoção do acesso não só a grupos e comunidades (como em 2008 foi proposto com a sua criação), mas também de pessoas a cuidados especializados (especialmente em Enfermagem), que não os cuidados de saúde familiar.

Criaram oportunidades únicas de acesso a cuidados de saúde mental (ainda muito carentes de investimento), a cuidados de reabilitação, a cuidados sociais e a cuidados orientados para o empoderamento comunitário de diversas comunidades (nomeadamente, bairros, escolas e estruturas residenciais para idosos).

As USP foram mantendo a firmeza na sua missão de governação da Saúde Pública, na vigilância epidemiológica, na gestão de programas e projetos e, claramente, a pandemia destapou um valor que era óbvio desde sempre.

As URAP foram mantendo um esforço hercúleo, com poucos recursos, para a sua missão de responder aos diferentes desafios de resposta multidisciplinar das populações, em colaboração com todas as outras unidades funcionais.

Estamos em 2022. Um novo Governo (ainda que de continuidade) tomou posse e apresenta o seu caminho para esta legislatura.

Tal como no videoclipe, o Governo vai avançando no seu caminho, mas esperemos que não continue a passar por cima e a atropelar os desígnios do investimento na saúde e não tanto na doença.

Analisando o programa, percebemos uma intenção de continuar a investir nas USF e acrescentam o investimento pretendido para as UCC. Um sabor mais doce, mas ainda assim envolto no agro de expectativas pouco firmes dos profissionais de saúde e diria, também, de uma população que, quando não tem experiências diferentes, não cria expectativas diferentes e, portanto, espera sempre cuidados à doença e não cuidados de capacitação e empoderamento.

Emerge o temperar as decisões e os caminhos com mais investimento, além dos tão necessários nas UCC, também nas USP e nas URAP. Não apenas em recursos humanos, tão frágeis ainda, é certo, mas em processos que promovam a motivação dos profissionais e que lhes confiram recursos para construir um Portugal mais saudável e mais empoderado para ser mais saudável.

Uma sinfonia agridoce, portanto, a que continuamos a ouvir. Mas, ainda assim, uma sinfonia. Temos a esperança de que a continuidade do Governo permita aumentar na pauta da sinfonia, mais notas de esperança e mais doces do que as agras. É em clave de Sol que queremos o futuro do SNS.


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