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Opinião

«Envolver ativamente as comunidades para que a resposta ao Covid-19 seja bem-sucedida»


Glenn Laverack

Gestor Técnico na Organização Mundial da Saúde - Unidade de Promoção da Saúde desde 2015. Consultor de envolvimento da comunidade para a Resposta Global ao Ébola à OMS e à Missão da ONU para Resposta de Emergência ao Ébola 2014-2015.



A pandemia da doença covid-19 é a maior desde a "gripe espanhola" há 100 anos e, provavelmente, a maior intervenção de saúde pública de todos os tempos. Até que uma vacina ou tratamento eficaz esteja disponível, a infeção pelo coronavírus só pode ser interrompida, permitindo que as pessoas assumam mais controlo sobre as suas vidas, individual e coletivamente, e em escala global.

Num surto de doença infeciosa, o primeiro inimigo é o tempo. A maioria dos governos respondeu rapidamente para impor bloqueios e usar a comunicação e persuasão moral para influenciar comportamentos de risco individuais, como o distanciamento social. A resposta ao surto foi motivada por dados, decisões políticas difíceis e, até certo ponto, pelos processos efetivos na saúde pública.

Na verdade, subestimámos a covid-19, que sobrecarregou os sistemas de saúde e levou os profissionais de saúde a trabalhar arduamente e ao limite. A pressão revelou lacunas na comunicação de riscos, envolvimento da comunidade, equipamentos de proteção, cuidados intensivos e testes.

Num surto de doença infeciosa, o primeiro inimigo é o tempo

Covid-19 é uma "Doença X", associada a um patógeno relativamente desconhecido que leva a uma pandemia, originando-se como um vírus zoonótico e com uma alta taxa de infeção. Surtos de doenças semelhantes incluem a síndrome respiratória aguda grave (SARS), em 2002, e o coronavírus relacionado com a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV), em 2018.

Todos ocorreram na Ásia e resultaram da venda e preparação de animais selvagens sob controlo não regulamentado e/ou condições insalubres, criando uma oportunidade para a transmissão de um vírus (Laverack, 2018). Por que as autoridades internacionais de saúde pública continuaram a permitir que essas condições persistissem?


Glenn Laverack

A verdadeira surpresa sobre a covid-19 foi a rápida disseminação e severidade, deixando-nos incapazes de prever como esta doença se desenvolverá nas sociedades. A natureza da covid-19 criou um sentimento de medo e uma necessidade de agir com urgência e sem precedentes.

Algumas decisões deixarão para trás custos humanos e económicos duradouros, que serão profundamente sentidos na sociedade. Da próxima vez, se pudermos escolher, usaremos essas medidas draconianas para interromper o surto ou optaremos por usar uma resposta de saúde pública mais subtil?

A covid-19 deixará para trás custos humanos e económicos duradouros, que serão profundamente sentidos

Não existe um modelo único de comunicação e envolvimento da comunidade durante uma pandemia. Cada país deve desenvolver a sua própria abordagem com base nos pontos fortes e fracos do seu contexto sociocultural, político, económico, de infraestrutura e histórico.

Alguns contextos socioculturais, por exemplo, podem tolerar confinamentos a longo prazo, enquanto outros resistem, especialmente quando a vida se torna cada vez mais difícil. O que funciona nalguns países deve ser tratado com cautela, pois, talvez não seja possível replicar noutros países.

Cada país deve desenvolver a sua própria abordagem para o envolvimento e a comunicação da comunidade com base nos seus pontos fortes e fracos

Os governos, em geral, não usaram amplamente abordagens centradas na comunidade, embora não haja razões para não envolver ativamente as pessoas na resposta a surtos. A ênfase está no cumprimento individual e, em particular, em medidas estritas e restritivas de controlo populacional. A promoção da saúde tem um papel importante na mudança de comportamentos, como lavar as mãos, além de fortalecer o envolvimento da comunidade.

As comunidades podem monitorizar o movimento quotidiano de pessoas numa determinada localidade, como um bairro, uma vila ou nas fronteiras internacionais. A autogestão da comunidade pode garantir o cumprimento dos requisitos de uma contenção social ou quarentena, ajudando outras pessoas a entender as consequências das suas ações e a denunciar violações ou casos suspeitos (Laverack e Manoncourt, 2015).

As contenções sociais têm uma hipótese maior de sucesso se as pessoas tiverem mais controlo e responsabilidade e forem motivadas por um senso de altruísmo, em vez de imporem punições por violações. No surto da doença pelo vírus Ébola na África Ocidental, comportamentos não conformes foram observados durante os processos de confinamento, às vezes, agravados pela má prestação de serviços, fluxo fraco de informações e falta de apoio do governo aos vulneráveis.

A situação piorou à medida que os confinamentos continuavam, geralmente em localidades específicas, e as tentativas das forças de segurança de coagir as comunidades a cumprir eram contraproducentes e levavam à desconfiança e à escalada da resistência (Laverack, 2018, capítulo 9).

Não há razões para não envolver ativamente as comunidades numa resposta a surtos de doenças

A proteção dos vulneráveis na sociedade não foi totalmente abordada durante a pandemia, incluindo refugiados e migrantes, socialmente isolados, sem-abrigo, idosos em ERPI, doentes mentais e mulheres e crianças em risco de violência doméstica. Pessoas vulneráveis e que sofrem de desigualdade serão mais afetadas pela covid-19.

Da mesma forma, os países com as maiores desigualdades serão potencialmente mais afetados pela covid-19. As condições de sobrelotação e as favelas, com suprimento insuficiente de água e falta de saneamento e alta densidade populacional, dificultam muito a oportunidade de higiene adequada e o distanciamento social.

As autoridades administrativas e legislativas, instituições de saúde e comunidades devem trabalhar juntas para combater um surto, mas foram obtidos pequenos ganhos no alcance de comunidades de favelas, sem uma estratégia clara de cooperação, envolvimento e comunicação (Laverack, 2018a).


Desde a década de 80 que Glenn Laverack tem assumido variadas funções executivas no seio da OMS, implementando projetos de promoção da saúde pública em países como Gana, Sri Lanka, Índia, Vietname

Pessoas vulneráveis e que sofrem de desigualdades serão mais afetadas pela covid-19

A mobilização de voluntários durante a pandemia por agências não governamentais, universidades e organizações comunitárias forneceu o apoio necessário para, por exemplo, entregar bens essenciais, fazer máscaras faciais e acompanhar pessoas vulneráveis.

A rede de apoio social habitual de amigos e familiares é interrompida durante um processo de contenção de contactos sociais e as pessoas, em prédios de apartamentos, bairros e aldeias, tiveram que se ajudar entre si. No entanto, o altruísmo não tem sido universal, com algumas localidades sendo mais organizadas e mais favoráveis do que outras.

O planeamento antecipado e o apoio de organizações comunitárias e redes de apoio voluntário pelo governo é uma boa prática, pois, fornece um vínculo entre as pessoas afetadas pela covid-19 e os serviços. No entanto, o apoio deve ser sistemático, para garantir que todas as pessoas vulneráveis sejam ajudadas durante um surto.

Os governos devem usar uma abordagem sistemática para ajudar os vulneráveis durante um surto

As atividades de promoção da saúde devem ser mantidas durante uma pandemia para apoiar um estilo de vida físico, mental e espiritual saudável, especialmente durante o confinamento. Os locais de culto foram fechados por via do distanciamento social e as pessoas estão a levar vidas stressantes e sedentárias.

A promoção de um estilo de vida saudável incluiria mensagens reforçadas sobre alimentação saudável e níveis de atividade, redução do stress e uso seguro e moderado de bebidas alcoólicas e tabaco em casa. Também é importante que sejam disponibilizadas informações sobre programas de prevenção em curso, como a vacinação e o acompanhamento de doentes crónicos, e sobre serviços on-line e telefónicos para lidar com o stress e a violência doméstica.

Na África Ocidental, estima-se que casos de malária não tratados e crianças não vacinadas por doenças como sarampo tenham levado à morte de mais pessoas do que o surto real da doença pelo vírus Ébola (Roberts, 2015). As mensagens de promoção da saúde também podem ajudar a combater informações falsas e rumores, reduzir o estigma e mitigar a desconfiança pública sobre os serviços públicos de saúde.

As atividades de promoção da saúde devem ser mantidas durante o confinamento para apoiar um estilo de vida físico, mental e espiritual saudável

As comunidades devem ser uma parte intrínseca de uma resposta a surtos, inclusive, durante a estratégia de saída dos confinamentos. Todos devem estar envolvidos ativamente para que a resposta seja bem-sucedida. O envolvimento e a comunicação da comunidade são duas abordagens importantes que podem permitir que as pessoas assumam mais controlo de suas vidas e saúde.

No entanto, as comunidades e organizações comunitárias devem receber recursos do governo para fortalecer as redes sociais e a capacidade local de lidar com um surto. Não fazer isso é questionável e as razões para não envolver ativamente as comunidades numa resposta a surtos devem ser avaliadas, incluindo quaisquer suposições sobre competências locais fracas e a falta de confiança entre o governo e a sociedade civil.

Referências:
Laverack, G. (2018) Health promotion in disease outbreaks and health emergencies. Boca Raton, Florida. CRC press. Taylor & Francis group.
Laverack, G. (2018a) Blacker than Black: Failing to Reach Slum Communities in Disease Outbreaks. Infect Dis Immunity. Vol 1 (1):4-6.
Laverack, G. and Manoncourt, E. (2015) Key experiences of community engagement and social mobilization in the Ebola response. Global Health Promotion. 1757-9759. Vol (0): 1-4.
Roberts, L. (2015). As Ebola fades, a new threat. Science 347(6227): 1189




Tradução do artigo: Pedro Melo, professor auxiliar convidado da Universidade Católica Portuguesa, Instituto de Ciências da Saúde (Porto)

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