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«É necessário que a voz da Saúde Pública se ouça junto dos Conselhos de Administração das ULS»


Gustavo Tato Borges

Presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP)



O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem vivido tempos difíceis desde o início da pandemia. Durante quase 3 anos, os profissionais de saúde fizeram das tripas coração e deram-se, de forma inexcedível, em prol dos cidadãos e do SNS, trabalhando mais horas extraordinárias do que nunca, numa demonstração de união e crença no SNS e no que a nossa Constituição defende.


Após o fim da pandemia, ainda no tempo da Dr.ª Marta Temido como ministra da Saúde, o Governo iniciou uma reflexão sobre qual a melhor forma de atualizar o SNS e o transformar, com o objetivo de ser mais capaz de atender às necessidades da população que serve.

Desse processo de reflexão, foi criada a Direção Executiva do SNS (DE-SNS), cujo objetivo é aperfeiçoar a gestão do SNS e o trabalho em rede que as diferentes instituições desenvolvem. Já sob a liderança do Dr. Manuel Pizarro, foi nomeado o Prof. Fernando Araújo para chefiar a DE-SNS, uma nomeação consensual entre os diferentes profissionais de saúde.

A equipa da DE-SNS, que viu o seu trabalho dificultado pelo enorme atraso na publicação dos seus estatutos, decidiu alargar o modelo de organização das Unidades Locais de Saúde (ULS) a todo o país, a partir de janeiro de 2024, considerando que a integração de cuidados e a articulação próxima entre as instituições, lideradas por uma mesma “cabeça”, seria o melhor caminho para transformar o SNS. Aliás, o Prof. Fernando Araújo e a sua equipa anunciaram esta medida como a maior transformação do SNS de sempre: a implementação das ULS 2.0.

Ora, chegados ao fim de 2023, é natural questionar-nos sobre como vai ser 2024... Irá o SNS sair fortalecido destas mudanças? Irão os cidadãos ficar melhor servidos e as suas necessidades melhor cuidadas no novo ano? Infelizmente, ainda não é possível dar uma resposta concreta a estas perguntas, porque ainda paira
muita incerteza sobre o SNS.


Gustavo Tato Borges

Em primeiro lugar, a dissolução do Governo, no passado dia 7 de dezembro, anuncia novas eleições e um novo ciclo político, desconhecendo-se quem sairá vencedor das eleições e quais as ideias que pretende implementar no SNS. Apesar de a DE-SNS estar a funcionar com plenos poderes, na verdade, o novo executivo ministerial pode decidir inverter esta transformação em ULS. E esta incerteza política dificulta uma adequada organização do SNS.

Em segundo lugar, as negociações entre o Governo e os sindicatos não chegaram a bom porto e assistiu-se a uma forte mobilização dos médicos que, de forma marcada, se manifestaram contra a possibilidade de efetuar mais de 150 horas extraordinárias por ano.

Dessa forma, o SNS passou também por momentos duros, quer em outubro, quer em novembro, perspetivando-se um dezembro complicado.

Infelizmente, após longas reuniões (estiveram mais de um ano em conversações) e o pedido de demissão do Sr. Primeiro-ministro, o Dr. Manuel Pizarro considerou não ter margem de manobra para atender às reivindicações dos sindicatos médicos, tendo sido possível apenas celebrar um acordo intercalar com um dos sindicatos. Um acordo que não permite resolver, de forma cabal, os problemas de atratividade do SNS, de captação e manutenção dos seus profissionais, deixando esse trabalho para o próximo Governo.

Em terceiro lugar, a legislação publicada sobre as novas ULS não apresenta nenhuma novidade relativamente à sua organização interna ou forma de funcionamento, o que significa que vamos implementar ULS 1.0 e não 2.0 como foi anunciado. E é importante fazer esta distinção, pois, as ULS 2.0 são, efetivamente, algo que é necessário para melhorar a resposta em saúde e potenciar a articulação e interação entre as instituições. E qual a diferença que é necessário implementar para as ULS 2.0? A função dada ao Serviço de Saúde Pública (SSP)!

Para criar as ULS 2.0, precisamos de transformar o SSP num departamento transversal a todos os níveis de cuidados, deixando de o alocar apenas aos Cuidados de Saúde Primários, porque a diferenciação técnica das Equipas de Saúde Pública é uma mais-valia para a gestão e resposta às necessidades da população das ULS.


O trabalho desenvolvido por estes profissionais irá contribuir para uma melhor e efetiva integração de cuidados, nomeadamente através da definição de prioridades de atuação, da análise dos determinantes e fatores condicionantes da saúde dos diferentes utilizadores dos seus serviços (residentes e não residentes na sua área de influência), da monitorização, análise e previsão das tendências de procura dos seus cuidados, da preparação e resposta em situações de contingência, da integração da visão e contribuições dos diferentes parceiros comunitários, da investigação e geração de evidência para suporte da tomada de decisão e da comunicação com a população.

O alargamento do seu raio de ação atual permitirá, ainda, potenciar os serviços de Investigação, de Epidemiologia Clínica e de Saúde Pública Hospitalar, concretizando a sua missão e o objetivo destas equipas de epidemic intelligence.

E, para essa mudança ser ainda mais efetiva, é necessário que a voz da Saúde Pública se ouça junto dos Conselhos de Administração (CA) das ULS. A presença de um médico de Saúde Pública no CA das ULS permitirá trazer o know-how da Saúde Pública para o órgão de decisão da gestão destas instituições, auxiliando na definição das respostas a implementar e na definição das prioridades de ação das ULS e potenciando a efetividade do trabalho desenvolvido por todos os profissionais.

Assim, 2024 iniciar-se-á com muitas incertezas, com muitas dúvidas, com muitas arestas por limar... Caberá, a quem vier a formar Governo, a árdua tarefa de continuar a mudança anunciada e de tornar o SNS mais atrativo e menos assente no trabalho extraordinário.


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